terça-feira, dezembro 25, 2007

A Verdadeira História X + Crise de Identidade III (Acrono) - (Final pt.1)




Ele olhou o relógio, pela milésima vez hoje. Já estávamos no bar há várias horas, e meu estômago sangrava de tanto vinho. O dele parecia arder também. Mas continuávamos bebendo e fumando como dois moribundos com seus últimos desejos. O dono do bar vinha checar a cada 20 minutos, com uma cara de preocupado. Só que não ficávamos bêbados. Não ficamos, não naquele dia. Nem naquela noite.

Ele me contou a história da menina de cabelos laranjas. A que morreu várias vezes, e, de acordo com ele, ainda morria. E eu decidi que era uma ótima história a ser contada. Mas pra quem eu contaria? Eu não tenho amigos. Apenas ele. Nem os garotos da academia, que moram lá no prédio. Aqueles que lincharam o pobre bandido que tentou me matar. Nem eles eu chamo de amigos.

Mas ele me falou essa história de um jeito estranho. Ele parecia estar querendo me dizer algo, mas ficava enrolando. Na realidade, todas as vezes que nos encontramos, ele falava comigo de um jeito estranho. Quase não me olhava nos olhos. Aliás, ele nunca me olhou nos olhos. E eu percebi, então: sequer sabia seu nome. Pra ser sincero, de todas as vezes, eu só lembro de já estarmos juntos. Nunca o modo como nos encontramos. Se ele telefonou, se eu o chamei. Nem sei se foi por acaso.

Ele então pediu a conta, e mais duas carteiras de cigarro. Nos levantamos, e nenhum dos dois disse nada. Ele foi sozinho até o balcão, pagou a conta e riu um pouco com o dono do bar. Eles pareciam se conhecer. Quando voltou, acendendo um cigarro, me entregou uma das carteiras de cigarro. "Vamos andando?", e eu respondi que sim. E fomos andando. Em nenhum momento, me olhou nos olhos. Nem eu.

Logo chegamos à orla. Caminhamos um pouco, ainda era cedo. Casais de namorados trocavam carícias nos banquinhos escuros. Rodamos um pouco e encontramos um desses banquinhos, no qual sentamos. Ele curvou-se pra frente, e começou a tossir. Apesar do escuro, eu percebi o sangue que saía a cada tosse. Senti o gosto, quando eu mesmo tossi um pouco. Ambos tínhamos úlcera, já sabia disso. Depois, ele acendeu outro cigarro. Tirou um pequeno livro da mochila que carregava, depositou-o no colo, e ficou em silêncio por alguns momentos, admirando o objeto.

Depois de uns minutos, acendi um cigarro também, e peguei o livro de seu colo. Seus olhos seguiram o objeto como se estivessem travados nele. Quando abri a capa, vi que tratava-se de um diário. A primeira página era toda amarelada, meio velha, e uma frase aparecia escrita de maneia estranha, bem no centro. Era "A Gazeta da Melancolia". E era uma idéia minha.

"Fique a vontade. Preencha-a com tudo que te vier à mente. Tudo que você achar que vale à pena ser dito. Se as pessoas querem te conhecer, é a partir daí que conseguirão". Eu estranhei, mas assenti com a cabeça. "E você? Como vai fazer pra ser compreendido?", perguntei. Ele simplesmente virou duas páginas à frente, e apontou pra outro texto. Era uma citação:
"E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós." ~ Gibran Khalil Gibran - O Louco.
Fiquei estarrecido. Aquilo já existia em minha mente. Eu nunca compartilhara com ninguém. Quando finalmente voltei a mim, ele havia se levantado, e parado numa barraquinha de doces. Comprou dois brigadeiros. Continuou andando, e mais à frente, encontrou a garota de cabelos laranjas. Entregou um dos brigadeiros a ela, e deu um beijo em sua bochecha. Os olhos dela brilhavam de maneira fenomenal, e era lindo de ver. Então ele voltou, me entregou o outro brigadeiro, e apontou para o lado oposto. Ela estava lá. Não a menina de cabelos laranjas. A outra... A que me deixou.

À noite, naquela orla, o calçadão calmo e frio, ela estava em pé. O vento balançava pouco seus cabelos curtos. Baixinha, com o rostinho angelical. Não parava de sorrir, me olhando. Mas era um sorriso triste, nostálgico. Daqueles com as sobrancelhas levemente erguidas... Eu me levantei e entreguei-lhe o doce. Ela me deu um beijo na bochecha e foi embora, sem dizer nada. Quando olhei pra trás, escutei a garota de cabelos laranjas chamando "Lipe...vamos?". E ele foi.

Tossi novamente, e desta vez, ainda mais sangue saiu de minha garganta. Fiquei um momento em pé, mas depois sentei no mesmo banquinho. O vento estava tão forte que a copa da árvore balançava, tirando a sombra, e deixando a luz da lua clarear o lugar. Peguei a caneta, amarrada ao diário por um laço vermelho, e comecei a escrever.

De repente, os clarões. Havia meses - anos, não sei mais de nada - que não os via. Os raios, as flores, as nuvens roxas, os fractais. A música, o perfume. Tudo apareceu de repente, como em desenho animado.

A garota de cabelos laranjas virou à esquina, na única rua escura do meu "mundo". A única rua que não era repleta de cores, de vibrações, de flores. Meu amigo parou, olhando para a rua, e depois voltou-se em minha direção. Deu um sorriso leve, virou novamente e entrou na rua também.

Eu não sabia o que fazer com o diário. Com a Gazeta da Melancolia. Mas o que quer que eu fizesse, me ajudaria a manter meu mundo. A me manter em meu mundo.

3 comentários:

  1. er... uma única lágrima e um sentimento que não consigo traduzir.

    não agora.

    =~

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  2. Pelo visto, não sou a única a procurar algo que me ajude a não querer sair do meu mundo.

    "Nosso mundo urbano, deserto, profundo(nem tanto, não é?)...e estranho."

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  3. Anônimo12:31 PM

    Assustadoramente Perfeito!

    Virei fã! =)

    4X1 tem nem mais graça! ;P

    ;***

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