sexta-feira, abril 24, 2020

Protegida


Dezenove anos, sem eira nem beira. Ao menos é como a mãe costumava recitar. Já tinha usado droga, já tinha transado com dois, já tinha se apaixonado pela amiga.

Sentido a dor de se separar de quem julgava amar. E até devia ter amado mesmo, mas com o tempo só imaginou que na verdade não existia amor - ou ao menos construía sua armadura com essa ideia que de verdade não tinha uma fibra de metal.

Uma armadura construída com uma malha de metal tecida pelas mãos de mil anões escandinavos e costurada pelas mãos de dez mil fadas do eire. Forjadas pelo fogo de cem mil djinns persas e ornadas pelas mãos de um milhão de artesãos encantados.

Ostentada por uma deusa guerreira apaixonada pela vida em uma batalha que



se

iniciou

perdida.

quinta-feira, abril 23, 2020

Ilusões do Cárcere

O tempo é uma ilusão, dizem os filósofos. Um conjunto de regras que apenas nós, humanos, parecemos seguir. E considerar.

Mesmo entre nós, porém, há aqueles que insistem em ignorá-lo. Em nortear a vida por outros princípios que não o tempo. Ela não era um deles. Para ela, o tempo era mais do que uma força real: era imperativo. Imperador. Era o paralelo infinito que parecia perdurar entre um estalo e outro, o surdo estalo que a água fazia quando, concentrada na umidade do teto, cedia à gravidade e escapava para espalhar-se novamente no chão de pedras.

Toc.

Deitada em bamba cama de palha, rente à parede na qual uma fonte parca e débil iluminava o minúsculo claustro, contava o tempo por meio das gotas que caíam com regularidade invejável aos mais precisos relógios.

Quando teria sido a última vez que olhou as horas em um relógio? Teria, na verdade, algum dia medido as horas em um relógio?


***


Ela não sabia dizer se dormira ou apenas se distraíra por alguns segundos. Mesmo que tivesse pego no sono, seguia cansada de sua inércia. É engraçado que, quanto mais a gente fica parado, mais cansado a gente fica.

Decidiu que havia dormido, pois não lembrava de ouvir as gotas na pedra fria. Era dia. Ao menos isso podia dizer com segurança pois o sol batia na janela que ficava no alto da parede em que se encostava. Deveria ser final de semana, pois os corredores estavam silenciosos.

Até que os gritos interromperam o silêncio com a indiscrição de um bêbado em uma loja de cristais. O sacro silêncio da eternidade. Assustou-se com os gritos de indignação do que parecia ser um homem sendo enclausurado contra a sua vontade. Como ela mesma havia sido infinitos estalos de gota atrás. Toc.

No início optou por se manter alheia àquela confusão. Não era a primeira vez que alguém indignado era preso contra a sua vontade, e ela sempre ouvia mais do que desejava. Os gritos, então, perduravam na sua mente durante vários sonos, até que esquecia-se - ou habituava-se. Não precisava de mais um tormento.

Mas desta vez parecia diferente. Apesar de todo o teatro, de toda a cena, algo naquela voz rouca não combinava com as palavras de indignação. Parecia, de certa forma, resignado. Não... aliviado com a situação.

Aproximou-se cautelosamente da porta de metal - que já não exibia mais as mossas de quando foi aprisionada - para dar mais atenção aos gritos. Quando finalmente achou poder discernir as palavras, os gritos pararam. Uma outra porta se fechou com um estrondo e exceto pelos passos distanciando-se no corredor, nada mais ouviu.

Voltou à sua cama e se encostou na parede fria. Depois do estalo de poucas gotas, perdeu-se novamente no devaneio de eras passadas em que era livre.

***

Despertada pelo som de batidas na pedra, levantou-se assustada. Já não havia luz, mas podia orientar-se pelo barulho que vinha da parede perpendicular à janela. Tateando no escuro, aproximou-se da fonte até que - com tenso receio - ouviu a pedra mover-se até cair no chão com um som abafado. Então silêncio. Por diversos estalos de água caindo no chão não pôde ouvir nada, até que...

Uma respiração!

Havia alguém, vivo, de carne, osso e necessidade de oxigênio na cela ao lado. Sua surpresa maior, porém, não veio desta constatação. Veio ao perceber que não sentia medo, apenas curiosidade.

- Há quanto tempo você está aqui? - Mal podia acreditar na brandura e tranquilidade da voz rouca que sem sombra de dúvidas era a mesma que gritara recentemente no corredor.
- Eu... eu não sei. Quem é você?
- Não importa, você jamais me conhecerá, a não ser que a gente descubra como sair deste lugar. Juntos.
- Mas é impossível, não existe...
- Coloque novamente a pedra no devido espaço se realmente acredita que é impossível.

Silêncio.

- ... Como?
- É tudo uma questão de tempo.

Continua (?)