quarta-feira, janeiro 02, 2008

O Roubo da "Virtude"

Seis da noite. Tife simplesmente não aguentava mais aquilo. Parara de controlar os bocejos havia vinte minutos. Seus irmãos ficavam falando sobre a garota de cabelos curtos, e ele tentava fingir interesse, mas há vinte minutos não conseguia mais. Sequer olhou pra ela. Nem quando ouviu, sem querer, o pai da moça comentar com seu pai: "por ela ser a mais nova, creio que vosso filho Tife talvez venha a ser o felizardo".

O interesse de Tife estava no pai da garota. Não, Tife não o achou bonito. Não tinha nenhum problema em apaixonar-se por um homem, apesar de nunca ter acontecido. Tife estava interessado em seu dinheiro, e nas jóias que sabia-se por toda a vila que ele escondia. É, exatamente. Tife estava com sono por que era da noite. Não um noctívago, um boêmio, e sim um ladrão. Tife gostava de andar pela noite, invadindo casas e descobrindo tesouros.

Às seis e meia ele se levantou, pediu desculpas e foi ao quarto. Dormiu por quase seis horas, quando o arcaico despertador feito de água e sinos o acordou. Rapidemente se pôs de pé, interrompeu o barulho do despertador e se dirigiu à cozinha. A empregada, Maria, ainda estava limpando os restos do jantar, quando Tife apareceu à porta.

- Tudo limpo, Maria?
- Ai, patrão! Não faça isso de novo! Não, não está limpo! Seu pai e seus irmãos, strega, um bando de porcos! - Maria tinha essa mania de falar "strega".
- Não, querida Maria. Quero saber se todos se recolheram...
- Ai, patrão, não me confunde! Sim, sim, todos deitaram há cerca de 40 minutos!
- Vou indo, querida. Segure a pedra pra mim, sim?

Tife pagava cerca de dez por cento de tudo que arrendava em suas escapulidas noturnas. Em troca, Maria ficava quieta e lhe dava ajuda em tudo que ele necessitava, como da vez que ele precisou de banha de porco para escorregar por um tubo de latrina, ou quando ele precisou de uma lixa de unha para serrar barras de ferro de um porão.

Tife pagaria mesmo se Maria não lhe ajudasse. Sabe, Maria era uma alma boa. Simples, usava boa parte do seu dinheiro para pagar as dívidas do seu filho mais velho. Ele não era muito responsável, mas quem se importa? Maria não irá mais aparecer nessa história, muito provavelmente. Talvez seja um engano. Talvez ela apareça.

Enquanto Maria segurava a pedra para que descesse às catacumbas da família, Tife pensava "hoje será apenas reconhecimento, saber onde ficam os bens do velho, e como farei pra capturá-los". Seis noites por semana, três roubos. Era a rotina de Tife. Ele geralmente voltava antes das cinco da manhã, o que lhe rendia mais três horas de sono, totalizando nove por dia. Era um rapaz saudável, praticamente um atleta.

Ao chegar nas catacumbas, dirigiu-se ao seu caixão. Reservado para o dia de sua morte, ninguém imaginaria que lá ele guardava os equipamentos, as ferramentas necessárias para o exercício de sua profissão. Parou e pensou um pouco: a casa do seu anfitrião ficava fora dos muros da cidade. Era uma semi-fazenda. Ele tinha outras fazendas no decorrer da estrada, perto da charneca. Mas nessa ele cultivava alguns poucos vegetais, e tinha uma criação de quatro ou cinco ovelhas. Tife sabia também que a casa era toda de madeira, com fechaduras de ferro fundido. Tife sabia exatamente o que usar.

Após pegar as ferramentas necessárias, Tife encaminhou-se pro fundo das catacumbas. Lá havia uma grade, fechada por um enorme cadeado, para o qual apenas ele tinha a chave. Não que fosse necessária: comprara, havia três anos, uma chave-mestra de um caixeiro-viajante, e desde então, pouquíssimas fechaduras escapavam de sua girada. Abriu a grade, fechou-a e sem a juda de tochas, entrou no túnel escuro. Tife enxergava bem no escuro.

Continuou por alguns metros até sentir que pisava em água e escutar os guinchos dos pequenos ratos que se assustavam com seu avanço. Tife adorava a sensação. Mais à frente, escutou zumbidos. As baratas, formigas e besouros que habitavam as galerias de sua rua. As antenas geladas, as patinhas finas tocando seu pescoço, nada disso o incomodava. Apenas agitava suas mãos para espantá-los, e seguia em frente. E seguiu. Seguiu até encontrar o cano final, o enorme tubo que dava no córrego fora dos muros. Estava a poucas dezenas de metros de seu destino, mas de súbito...

Tife escutou cachorros, homens gritando, e viu ao longe, perto do muro, o escuro que recuava de seus domínios no decorrer do muro, assustado pela luz do fogo das tochas.

Continua...

Um comentário:

  1. Tomara que Maria apareça novamente... parece até que eu tô vendo a figura.

    Mas oquei, eu espero o próximo post para maiores comentários...

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