quinta-feira, julho 11, 2019

Fogos de Artifício I

A minha irmã é a esperta de nós duas. Ela escreve as peças, escolhe a temática, a linguagem e até mesmo a jornada entre dor e solução que nossas heroínas enfrentarão. Ela é a inteligente da dupla, e eu estou resignada com isso.

Ela inclusive jamais admitiria, mas eu tenho quase certeza de que é tudo baseado nas experiências que ela teve - e continua tendo. Eu consigo perceber por que é assim que funciona: a gente senta junto com mais algumas pessoas da equipe, e quando surge uma ideia base ela para, respira fundo (enquanto todo mundo continua conversando), e faz aquele movimento involuntário com a cabeça. É tipo, meio jogando pro lado.

Deixa eu explicar: no início da faculdade a gente estudou um pouco de linguagem corporal, e o movimento que a pessoa faz com os olhos - as vezes com a cabeça inteira - de olhar pra cima e pra direita serve para ativar a criatividade e iniciar a construção de uma imagem.

Foi quando comecei a observar as pessoas, inclusive ela, pra identificar esse e outros sinais. No início eu pensava que ela estava começando a criar uma narrativa; um mundo novo, todo dela naquele momento. Depois de refiná-lo ela iria nos trazer pra dentro e iríamos, juntas, desbravar essa recém criada dimensão.

Mas isso foi no início. Já no final, quando ambas estávamos próximas da formatura e mais independentes, me interessei ainda mais sobre técnicas de observação. Foi quando descobri que esse movimento também serve para acessar uma outra área da nossa mente: a memória. Então o grande trabalho que ela tinha para inventar esse novo lugar era lembrar situações em que ela enfrentou problemas parecidos com a ideia sugerida e adaptá-la à realidade e tema escolhidos.

É importante dizer que não estou depreciando seu trabalho. Uma das teorias que estudamos diz que criatividade é justamente isso: a capacidade de usar o raciocínio para moldar as memórias em torno de um problema para solucioná-lo.

Sim, eu só percebi isso por causa de nossa relação. Eu a conheço. Depois que passei a explorar essas técnicas de observação, aprendi a identificar nos roteiros as situações que ela enfrentou; ao menos as que eu fiquei sabendo.

Foi quando eu senti que finalmente a conhecia.

Felicia é uma pessoa difícil. Sempre teve dificuldade em se expressar, até descobrir o teatro. Ali ela podia, anonimamente, gritar ao mundo sobre suas dores. Por um bom tempo, ninguém entendia. Ninguém percebia que quando um de seus personagens era esfaqueado pelas costas é que ela estava se sentindo traída. Quando sua heroína era altruísta, tinha características de pessoas que ela admirava.

Quando suas vilãs justificavam suas transgressões, era de seus pecados que ela estava falando. Os pecados e, principalmente, suas razões.

Mas as estórias têm limitações. Não é possível transmitir a angústia de ficar sem ar em meio a uma crise de ansiedade, nem a dor de um sentimento de rejeição apenas com palavras; não se o leitor não passou por essa dor.

E aí começa o meu papel. É o meu momento de brilhar. Eu não tenho o dom da criatividade nem consigo inventar civilizações inteiras apenas com base nas minhas experiências. Mas com extrema facilidade consigo compreender a dor alheia e traduzi-la de forma que terceiros possam vivenciá-la também.

Sou capaz de interpretar o regozijo de uma conquista, mesmo que não faça sentido pra mim, e incuti-lo em pessoas que jamais planejaram aquele objetivo. Minha qualidade principal é reproduzir com tanta - ou mais - fidelidade o que ela projeta, e isso faz de nós uma dupla eficiente e insuperável.

Não entendeu? Vou tentar me expressar melhor: nós temos uma irmã mais nova. Ela se chama Carmela, e é aquele tipo de pessoa que chega a incomodar de tanta sorte que tem. Nada, absolutamente dá errado pra ela. Imprudente, irresponsável e espontânea, não se organiza pra nada. Tudo vem do momento, e eu realmente acredito que isso é a causa dos resultados frequentemente positivos.

Quando pensamos que alguma ação impensada irá trazer consequências negativas que irão gerar aprendizado, seu hedonismo é tão insistente que ela consegue se divertir e ganhar enquanto supera as dificuldades que surgem. Até os seus momentos tristes são enfrentados com sorrisos e gracejos, o que traz tanta leveza que naturalmente são transpostos com naturalidade.

Ou ao menos é o que pensava. Quando fomos desafiadas com uma temática de sentimentos camuflados, disfarçados, a descrição do protagonista foi suficiente para identificar, ali, nossa irmã caçula:

Descobri que ela ri por fora e morre por dentro.

E não me pergunte por que ela faz isso consigo todas as vezes. Ela sabe como vai terminar mesmo antes de começar. Mas não irei deixá-la sozinha na linha de chegada. Juntas marcharemos, de mãos dadas.



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