Depois de sair do parque, encaminhou-se pra casa; não ia entrar, nem nada. Só dar uma olhada pra entrada do prédio. Lembrar de quando era pequena, e saía pra jogar
futebol com os meninos. A mãe detestava isso, vê-la sair com garotos pra jogar
bola, e não com as meninas pra brincar de
boneca. Mas o pai adorava. Ele tinha menos preconceitos em relação a isso que a mãe. Ele adorava saber que a filha podia muito bem fazer atividades "masculinas", mas ainda assim conservar a
asinha rosa de borboleta da fantasia do colégio. Ela era mesmo feminina, sabia disso.
Pensou em subir, pegar a
asinha da borboleta, e levar consigo pra... aonde estava indo? Não saberia dizer nem quando chegasse. E isso não interessava, né? Desistiu de subir. A asinha de borboleta poderia esperar. Seu pai guardaria, com certeza. Desceu a rua com um sorriso estranho no rosto. Estranho pois não tinha motivo, não tinha razão para sorrir. E estranho fisicamente mesmo. Não era um sorriso feliz, era meio
torto. Só então percebeu que chorava.
Mas por que choraria? Pelo que poderia chorar, se não tinha motivos pra ficar triste? Simplesmente por não ter motivos para ficar feliz. A dor não residia apenas nos problemas. A falta de problemas também representava a falta de soluções, e o gozo de resolver algo. Como quando resolveu pintar o cabelo de
preto, pra esconder o
laranja. O
laranja natural, quer dizer. Mas não conseguiu. No dia seguinte, o
laranja voltou. E aí é que se apresentou a real solução. Percebeu que ficava linda com o cabelo
laranja. O
laranja natural, quer dizer. Decidiu então fantasiar.
Enquanto descia a rua, com lágrimas nos olhos e um sorriso
tor
to, pensou-se navegando.
Mares calmos, num dia claro, e o vento muito, mas muito forte e frio. Seus
cabelos voavam de um jeito muito charmoso. Nua, com os mamilos rijos, os mamilos bem no centro daqueles seios pequenos. A proa estava cheia de areia. Sentia frio nos pés, em meio às
algas. Os albatrozes deviam ter trazido as algas pra proa, só podia. De que outro modo elas chegariam ali? Só se o navio tivesse submergido em algum momento, antes dela embarcar. E provavelmente foi o que aconteceu. O vento ficava mais frio, e os pingüins apareciam nadando, ao redor do navio. Eles eram rápidos, e o navio, lento. "Indo para o sul, sempre para o sul".
A ilha crescia no horizonte. Aquela ilha era para onde estava indo, com certeza. E agora, isso interessava. Sabia dizer que seu destino era A Ilha. Uma ilha bonita, que por causa do frio, tinha um pico daqueles bonitinhos, coberto de neve, mas a vegetação embaixo era densa. Densa de um jeito
não-tem-ninguém-vivendo-aqui. Só a natureza. E enquanto o navio se aproximava, ela, na proa, alternava entre olhar pra ilha e pros pingüins. E chorava. Chorava de felicidade. Era maravilhoso, sentir aquilo. O frio não incomodava. Ou incomodava, mas era isso que era bom, por ser frio. É bom saber que você está sentindo muito frio, num lugar longe de casa, numa atmosfera lânguida. Era quase folclórico.
E enquanto não percebia os recifes de corais se adensando, indicando a proximidade cada vez maior da costa, também não percebeu o ônibus saindo da perpendicular. Morreu enquanto fantasiava com a ilha que seria seu destino.