quarta-feira, fevereiro 18, 2015

O garoto de ouro

Entre as buscas e as doses de whisky, ele sentiu-se nostálgico, em parte devido à embriaguez. Levantou, procurou um banquinho e, colocando-o de frente ao guarda-roupa, subiu. De cima do armário, tirou uma caixinha de metal, pequena, na qual lembrou que guardava cartas e outros pedaços de memórias. Retirou uma em particular.

A carta parecia brilhar, mas só para ele. Estava, na realidade, puída e amassada.
Querido, 
Você sabia? Imaginava que as coisas iriam sair tão errado para você? E que para mim elas seriam tão boas? Naquela época você era o menino de ouro, e nunca iria perder a luz que trazia nos olhos. 
Já parou pra pensar no que você se transformou? Percebeu, finalmente, que não era apenas de mim que você estava fugindo? Ou será que você sabia, mas não se importava?
A chuva caiu lentamente sobre telhados de incerteza, e eu pensei em você, em todos os anos que se passaram e, agora, toda a tristeza saiu de mim.
Mas você sabia que eu nunca pensei que você perderia a luz que trazia nos olhos?


Pink Floyd - Poles Apart

quinta-feira, janeiro 29, 2015

Mensagens Fantasmas II

- Dimitri. A última vez que ouvi este nome, era um garoto que morava aqui pelo centro. Soube que levou um tiro, e quando se recuperou ficou meio louco.

Essa era uma das respostas mais comuns - e também das mais brandas - que eu ouvia quando perguntava por ele.

Fazia, já, mais de cinco anos desde a última vez em que eu o tinha visto. Junto com a menina de cabelos laranjas - sobre quem, em minhas pesquisas, li diversas vezes que havia morrido. De formas distintas. Também fora ele quem me tinha dado o caderno que me fez dar vida ao meu mundo, tantas vezes.

Só que as pessoas não conheciam Dimi como eu. Elas não sabiam quem ele era de verdade. Ou suas habilidades. Dimitri era uma pessoa especial, por assim dizer. Dimitri era o tipo de cara que, sem querer, fazia a gente dar asas à nossa imaginação. Era solitário o filho da puta. Mas quando ele falava, a gente parava para ouvir. Quando escrevia, a gente parava para ler. E como era gostoso!

Sério. Apenas um seleto grupo conseguia desvendar a vida dele. Entendia a realidade por trás do que ele escrevia. Ele era impressionante! Causava, em nós, um sentimento radical. Nós, os poucos que o admirávamos, percebíamos nas periódicas palavras, o que era viver. Às vezes - muitas vezes, inclusive - não tinha nada a ver com nossas vidas. Mas a gente olhava para aquelas pessoas, aqueles cenários, personagens, com simpatia. Com afeto. Com identificação.

E aí ele morreu. Ou achamos que morreu.

Acontece que, há poucos meses, eu descobri que isso talvez não tenha acontecido. Veja bem, só poucos de nós, leitores, sabem sobre o mundo de Dimitri - que agora é nosso, nossa responsabilidade. E de repente aparece, assim do nada, uma parede toda grafitada com aquele mundo? Com os fractais e explosões? Todas as suas formas e cores? Sensações e flores? Cheiros e dores? Luzes e amores?

Ou fui eu, e não me lembro. Ou foi Diadorim, e ela se esconde, Anônima. Talvez Lua, e ela não admite. Ou...

Bom, não importa. Não importa qual de nós. O que importa é que, para que qualquer um de nós pudesse ter feito aquilo, só existe uma razão possível no universo: o retorno de Dimitri.





É noite. Como em todas as noites de verão, eu sofro. Sinto falta de me enrolar em um cobertor, de tomar uns goles de whisky, cachaça, ou vinho, sentindo o frio em meus ossos, congelando a cada minuto inerte. Sinto saudade.

Como uma noite de verão qualquer, visto minha samba-canção e sento em frente ao computador. Essa vai ser mais uma noite daquelas. Por onde anda Dimitri?

Acendo uma cigarrilha e encho um copo de whisky. Duas pedras de gelo, um dedo d'água. Dizem que a água quebra as moléculas do álcool, liberando o aroma do malte. A cigarrilha substitui a sensação que há anos satisfizera-me através do cigarro.

Dimitri me ensinou que a vida é mais importante do que simplesmente hedonismo. Me ensinou que fumar, tragar a fumaça para os pulmões, ignorando o mal que era feito ao meu corpo, só fazia bem por minutos. Nós tínhamos toda uma vida pela frente, e chegara a hora de cuidar dela. Então comecei com a cigarrilha que, tal qual um charuto, não se traga. Não se envia ao pulmão na forma da vil fumaça. Mas ainda assim mantém um toque, um pedaço do escaldante inferno em nossas mentes que, um dia, irá se concretizar e tornar-se realidade.

Após seis horas de pesquisa e oito doses de whisky, ao tímido nascer do sol, encontro informações sobre um livro. Desinteressante. A capa era um rabisco em vermelho, duas palavras indolentes sobre um plano em branco. Como uma assinatura em sangue posta sobre um papel puído. Bêbado, associo o livro a mais um caça-níquel, destes experimentais, secretos. Graças aos deuses, porém, adiciono aos meus favoritos, poucos minutos antes de deitar, suado, sozinho e nu, à cama quente. Machuca. A temperatura está alta demais para ser confortável. Penso automaticamente por alguns segundos que só por estar extremamente inebriado é que consigo cair, efetivamente, nos braços de morfeu.

Horas mais tarde, um desfoque. Uma dor, uma ansiedade. Inicialmente associada à ressaca, essa ansiedade toma formas mais tangíveis. Algo que me dizia "vai, olha, revisa o que encontraste".

O título do livro? 

"Eu voltei".