domingo, maio 25, 2008

Don Juan

- Louco? Não, louco não. Tenho dificuldades em me concentrar na realidade como deve ser vista. Também não é como sob efeito de drogas.

"É como se, a cada minuto, raios viessem do nada, e incessantemente me pusessem à prova, não a mim, e sim à minha concepção de real, do Real. Mas eu não vejo raios. E não saio da realidade. Já tentou ouvir alguém falando por muito tempo, e perdeu a concentração com uma mosca? Pois é. Imagine isso a cada segundo, e não só com alguém falando. E não só com uma mosca. Esse é meu problema. E, incrivelmente, ao não me concentrar em nada, me concentro no todo de uma forma dinâmica.

"A vida passa como passam os segundos, e eu vejo universos nascerem e morrerem nesse tempo. Não enxergo bem, tenho patologias como miopia. Mas enxergo longe, pois não me atento ao que está à minha frente. Nem ao que está atrás disso, não, só me atento ao todo, já disse! Já disse! Então como posso viver desse jeito? Trabalhar, ganhar dinheiro? Não sei, não lembro de meu trabalho. Já fui carpinteiro, pintor, piloto. Já fui jornalista, assassino, empresário. Já fui estudante, ladrão, comerciante.

"Nunca compreendi as coisas quando elas me apareceram; mas você também nunca viu universos nascerem ou morrerem."

quarta-feira, maio 14, 2008

FIM.

Então... dificuldades existem, mas...pra quê?
Para serem superadas, dizem uns. Hahá. Ou para dizerem:

Desculpa, Dimitri, mas hoje não foi teu dia.
Tô escrevendo isso... Será que assim meu mundo me aparece?




Não.

domingo, maio 11, 2008

A imagem, o homem

"Se você não me ama, me deixe ir.
E eu sou um escritor de ficções
sou o coração ao qual você chama de 'lar'

E escrevi páginas e mais páginas
Tentando te livrar de mim

Solte minha mão, por ternura
E não me torture mais.

E eu sou o escritor de ficções
sou o coração ao qual você chama de 'lar'

E eu sou o escritor, sou tudo que você esperava.
Mas se você não me ama, me deixe ir."

E ele se tornou uma imagem, uma idéia. E diferente de todos os que fazem uma idéia para ser, ele sim, conseguia estar à altura dessa idéia. Mas ninguém comprara essa idéia, e ele acreditou que era por que ninguém gosta de uma idéia quando alguém consegue cumpri-la.

E morreu feliz.

Decemberists - The Engine Driver (adaptado)

sábado, maio 10, 2008

O Escaravelho

Estava sentado, com uma blusa de veludo vinho e uma calça verde, meio brilhante, mas não era de vinil. Era só um jeans, normal. Ele fumava muito, e eu me perguntava o motivo. Não podia ser só charme, até por que ele terminava tossindo bastante, fazia mal. Por que fumar, então?

Geralmente ele vive rodeado por pessoas, bebendo, mas não naquela noite. Ele estava sozinho, sentado e tomando um refrigerante. Acho que tinha acabado de chegar, e eu tive essa sorte. Ele havia colocado um jazz na jukebox, Chummy Macgregor, e só batia levemente o pé no chão.

Sua mesa ficava à frente do balcão, e foi pra lá que me dirigi, após pedir licença às amigas. Peguei uma cerveja e sutilmente comecei a dançar; era mais um balanço. Mexia-me suavemente de acordo com a música, de costas pra ele. Infelizmente, seu telefone tocou na hora e ele não notou a performance.

Ele atendera com uma expressão desconfiada, mas logo identificou a pessoa que ligara, e sorriu desajeitado. Quem diabos seria? Uma mulher com quem saía? Pior, uma que iria encontrá-lo no bar? Desligou, deu um último gole no refrigerante e gritou pedindo uma cerveja. Aliás, tentou gritar, mas sua voz rouca não o permitiu ser ouvido pelo garçom.

Aproveitei e fui eu mesma levar a cerveja em sua mesa, arriscando tudo...

quinta-feira, maio 08, 2008

Insônia de há anos.

Já eram três da manhã e ele não tinha dormido. Duas horas deitado no quase absoluto escuro, e nada do sono chegar. Não era insônia, nem pensava em coisas demais. Ele estava sem sono, apenas. Acostumado a dormir cerca de três horas por dia, na noite anterior dormira sete ou oito. E bêbado. Não conseguiria.

De olho fechado, revirava-se na cama, entre um trago- e outro. E exatamente entre um cigarro e outro, abriu os olhos. O que viu foi um clarão, iluminando a totalidade outrora nula de seu quarto. Alguns feixes repetidos, claros, como um flash. Alguns segundos depois, o trovão rasgava o quase-silêncio criado pelo hipnótico barulho do ventilador.

Seguindo este, outros vieram, relâmpagos e trovões, e ele ficou de olhos abertos, fumando e olhando para a janela de vidro fosco, que fechada, apenas permitia a visão dos clarões e do escuro. A chuva não havia ainda começado, e a cena lhe agradava. Coberto até a cintura, ele mexia as pernas pela agitação e excitação de esperar o momento da água cair. Continuava fumando.

Ao terminar o último cigarro, sorriu. Ninguém perceberia esse sorriso, seus dentes. Jamais alguém saberia que ele sorrira neste momento. Chegou a ouvir até alguns de seus próprios gemidos de alegria no sorriso. Como o presságio de uma gargalhada. Não passaram disso. Às três e quarenta, a chuva começou.

E ele desistiu de dormir, levantou-se e foi trabalhar.

segunda-feira, maio 05, 2008

Recompensa bruta

Houve um tempo, antes de cidades saberem sobre outras cidades, que uma destas prosperava mais do que a maioria. A cidade crescia a cada dia, em todos os sentidos. Os habitantes adicionavam duas fileiras de tijolos a cada rua que a circundava. O comércio sempre tinha mais material para vender, e a freguesia, mais dinheiro para comprar. E, claro, a cada dia, nascia cerca de um bebê, que viria a se tornar um novo habitante, e que iria comprar, vender e adicionar tijolos às ruas da cidade.

Para aquelas pessoas, a sua cidade era única. Fora dela só existiam desertos ou florestas, monstros ou comida, água e pedras. As pessoas não procuravam por outras cidades. Sequer imaginavam que existiriam. Mas justamente por crescer, por aumentar, elas começaram a enfrentar as dificuldades que as separavam do que quer que existisse do outro lado. Alguns percebiam que havia mais comida do seu lado da cidade, e quando ia adicionar sua parte nos tijolos da rua, colhiam mais vegetais e matavam mais faisões, ficando mais ricos e mais gordos.

Outros notaram que do seu lado, a água era mais fresca, e aumentavam suas cisternas para armazenar mais água, que seus filhos herdaram. Alguns, de outro ponto, tiveram que enfrentar mais monstros, e se tornaram ótimos guerreiros. E foram passando seus conhecimentos táticos e bélicos para os descendentes.

Já os que cresciam pro lado do deserto, tiveram que passar por maus bocados, que os forçaram a aperfeiçoar a pavimentação de forma que concluíssem seus projetos antes do tempo, para não passar fome, sede, ou enfrentar monstros noturnos. E estes, embora tenham perdido mais tempo devido às mortes no início da empreitada, logo concluíram o projeto. E chegaram a outra cidade. Após a surpresa e curiosidade iniciais, as cidades passaram a fazer comércio. Os habitantes dos outros lados pararam de trabalhar na expansão territorial, e corriam para este que era o do mercado. Pagavam então altos pedágios aos pavimentadores, que finalmente recebiam as justas recompensas por seu trabalho.

Quando, num dado momento as cidades guerrearam, os primeiros a morrer foram os pavimentadores.