segunda-feira, outubro 20, 2008

Dim

- Imma big guy, ya know? I mean... I know some people there are brains. Imall fats and muscles. Not that there's a problem, anyway... I guess th'world is made of these, ya see? So... Imma big guy.

"My name is Dean. I guess mumma gave me that 'cause she knu I wasnt gonna be smart. Maybe she was trying to call me Dim. And ya know, this is the story of how my stupidity saved my ass.

"It all began with a girl. As always. Some day, I was gettin' back home from mumma's store, when my friend... I mean, Mark showed up:

- Yo, Dean, mah man! Zup, dude?
- Oh, hey Mark. How...how ya do?
- Nice, bro. Look, ya know Bart and Jimi, dontcha? Well, ya doing anything tonight?
- Well, ya know, Mark. I've got lots of things to do, I've got to... Ya know, watch TV with ma... No, I ain't got nothing.
- Yeah, figured. You see, we're gonna have a party, tonight, and we thought - aye, lets call our good friend, Dean Mc... Mac... Dean. So, ya coming ovah?
- Gee, ya, Bart and Jimi... Sure, Mark! I'll be there. Ya home?

And that was it. I'd got a party to go. The first of my life. And ya know, I was twenty five old.

domingo, outubro 05, 2008

À noite.

Prólogo
A noite

Aproxima-se o final da tarde, e a bela luz do crepúsculo ilumina uma construção cinza, cujas paredes estão cheias de painéis feitos de papel colado. Papel este que se amarelou com o tempo, e quase nada exibe das propagandas políticas e publicitárias que já foram.

Pra quem olha do Capibaribe, o largo estacionamento entre as portas do prédio e um alambrado composto de ferrugem torna-se parte de um contexto frio, apesar do clima tropical: a cidade morreu. Folhas e poeira dançam ao prazer do vento.

A antiga Estação Ferroviária Recifense já não funciona mais, já não recebe passageiros vindos do sul ou do norte. Aquele ponto do Nordeste não existe. Mas em momento algum isso significa que está deserto. Que não existe vida por lá.

Assim que o sol se põe, dois homens surgem rapidamente de uma viela e se jogam contra as telas do alambrado, escalando até pular pra dentro do estacionamento. Tornam a correr até atingirem as paredes do edifício. Parecem mesclar-se com a parede grafitada e descascando, por causa de suas roupas surradas.

A escuridão favorece sua empreitada: eles começam a tatear a parede até que encontram um espaço mais fundo, por trás de um dos cartazes. Um deles saca o canivete retrátil e golpeia o papel grosso até que este se rasgue, abrindo um buraco onde ele enfia a mão e puxa um pacote marrom. Ouve-se uma gargalhada lunática até que o outro comece a puxar mais e mais pacotes de dentro do buraco.
- Vamos ficar ricos, seu filho da puta!
- Pega mais, me deixa pegar!
- Cadê a mochila? Traz a mochila!
- Caramba, tem mais de cinco quilos! Acho que vamos conseguir uns duzentos reais por isso!
- Não exagera... Se começarmos vendendo caro, os chefões vão nos notar fácil!
A moeda desvalorizara muito nos últimos anos. Vários usuários de drogas trouxeram mais mercado para a cidade. Mais mercado, menores os preços. Não se vendia mais maconha em gramas. Apenas em quilo, pois não valia à pena vender menos.

A dica daquela garota era correta. Eles tinham drogas para levantar dinheiro. E ela havia prometido, com mais dinheiro, ela daria mais informações. Iriam começar um negócio, e ela seria a líder. Eles não se importavam, contanto que tivessem seus lucros.

Do outro lado do rio, ela os observava com um sorriso. Seu plano daria certo. Ela escolhera os homens ideais para o trabalho. Não usavam a droga que moveria o negócio, logo não havia o risco deles consumirem. Em alguns anos, eles construiriam uma franquia interessante, e ela teria tudo para manter-se na cidade. Ela gostava da cidade, do modo como o vento e as lâminas d’água do mar acariciavam sua pele negra.

Eles já se preparavam para sair, quando ela percebera algo errado. O vento parara de soprar, mas as folhas e poeira continuavam em movimento, mais rápido que inicialmente. Pulara então para trás do prédio, relativamente alto.

Um dos homens, o que estava carregando a mochila, decidiu olhar para trás e verificar se não esquecera nada. Sua cautela talvez tenha lhe salvo a vida: foi quando viu um homem grande, porém magro e silencioso vindo em sua direção. “Aonde pensam que vão com meu produto, cavalheiros?” – o tom cordial do gigante não lhes acalmou nem um pouco. Sacaram os canivetes.
- Este bagulho não é seu, companheiro. Foi colocado ali há muitos anos.
- Vocês não entenderam. Está em meu domínio, torna-se meu.
Antes que eles lhe perguntassem sobre o fato daquela ferroviária antiga ser seu domínio, uma luz surgia pela antiga ponte de ferro: era um carro. Atropelando o portão e quebrando assim a corrente que o selava, entrou no estacionamento freando entre seus comparsas e o homem. A moça misteriosa descia do carro de arma em punho, dizendo para eles entrarem.
- Não precisamos desta hostilidade, Nikolai. Temos o que queríamos, e vamos embora agora. Garanto que eles não irão importuná-lo mais.
- Amanhã, passe aqui e deixe uma corrente nova. Não preciso de mais que isso.
Entrando no carro, a mulher fez uma prece em latim, agradecendo a quem quer que escutasse por ter sido um erro pelo qual ela não pagaria caro.

Homage.

"Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!..."

"Canções que me fazem sentir melhor quando as coisas por trás do sorriso não estão bem".

sábado, setembro 27, 2008

Levante-se

A queda parecia em câmera lenta. Ela via cada movimento, quase como se fosse uma espectadora. Mas não, era ela quem caía. Seu joelho direito batendo no chão, arranhando-se com a areia. Suas mãos sendo torcidas com o impacto, por tê-las usado para amortecer. Por fim, seu rosto indo direto de encontro à pedra fria, numa expressão de medo e surpresa.

Começava a levantar-se. Uma mão, depois a outra - esta doía, provavelmente quebrada - ficando de quatro, até que ouve um barulho de motor e olha para o lado.

Não daria tempo. Não adiantou cortar os cabelos.

Morreu após ter sido passada pra trás.

sábado, setembro 06, 2008

A vida te dá

Quando o vento resolver ser frio;
a lua resolver não aparecer;
a bebida resolver não inebriar;
a rua resolver não te abraçar...

"Eu inventarei palavras sem sentido que só você compreenderá".

quarta-feira, agosto 27, 2008

Epitáfio?

Um amigo meu, uma vez me disse:

"Não é pressa não. Mas sei lá, seria bom deixar pronto, né? Então. A vida de algumas pessoas é massa. Eles têm um monte de coisa. Eles têm mulheres, dinheiro, viagens. Deve ser ótima mesmo.

Só que eu sonho com tudo isso. A minha vida também é massa, me dá a chance de sonhar com essas coisas. De projetar, fazer planos que me levem a ter essas coisas. A meu ver, a minha vida não perde pra dessas pessoas, e se perde, é por pouco. Pouquíssimo.

E...? Eu iria dizer o quê, em meu epitáfio? Eu não sei fazer epitáfio. Então vou deixar minhas exigências. Não, minhas solicitações!

Primeiro, que ninguém fique triste. É uma merda, você construir algo com uma pessoa, e de repente, ela some. Seria mais fácil se ela quisesse, e se houvesse a chance dela voltar. Mas não quis. E não há. Tentem compreender. Se houver algo depois, pra mim, vai ser melhor. Se não, então 'cabou, pô. Não vou estar reclamando.

Segundo, uma festa. Não, não pra comemorar, seu merda. Hehê, não. É, sei lá, pra se despedir. Eu odeio despedidas, mas adoro quando elas acontecem sem minha presença. Então organizem. Proponho que Kelmer a organize, ele é bom nisso. Mas tem que ter a participação de Nando, Junior, Ugu, Diogo, e até Bruno. Organizem aí. Os caras sabem o que eu iria querer ouvir e ver, e sentir e beber.

Terceiro, divulguem. Não, não minha partida. E sim meu trabalho. Por trabalho, não falo apenas da carreira profissional. Divulguem o que eu fiz. Ora, eu sempre quis ser conhecido. Sei lá, pensem num projetinho, um blog, até uma comunidade no orkut, tipo: ‘O que ele fez que influenciou em algo, mesmo que pequeno’. E peçam pra galera comentar. A participação do mundo é imprescindível.

Talvez tenha mais coisa, Dimi. Mas sei lá. Deixo pra que você desenrole. Desenvolva. Isso é muito importante pra mim".

Na hora, eu ri e mudei de assunto. Mas hoje, sinto vontade de fazer essas coisas. Cumprir estas solicitações.

Não, ele não morreu ainda. Nem vou cuidar pra que isso aconteça. Só tenho vontade de agradá-lo, e não queria esperar.

sábado, agosto 02, 2008

Creep

I don't belong here.

I'm half the man I used to be.

Choose one, please.

And let the sun rise. Let it dawn. For you.

'Cause for me, it's gonna be a nightmare, while for you, it's a dreamcometrue.

terça-feira, julho 29, 2008

Graduating...

Respirar.
Tossir.
Parar de tossir. É um grande passo. Para respirar.

Voltar a viver, voltar a sorrir. Como dizem les clichés, uma nova etapa se inicia. Com gostinho de etapa antiga. Só que agora, ela é protagonista.

Obrigado, céus. A etapa que sempre existiu nos arredores, coadjuvando, agora é protagonista.

E aí vou voltar a respirar.

Já que decidi parar de tossir.

domingo, junho 29, 2008

SA 4

- ...Manhã de domingo. Eu não sabia pra onde ir. Saí do quarto, me esforcei pra sair de casa sem meus pais verem. Quando piso no elevador, percebo que estava de samba-canção, camiseta regata e com o cabelo assanhado. Pelo menos deu pra limpar o olho, e a marca de baba na bochecha. God Save the Lift Mirror.

Não consegui atravessar a rua, então continuei caminhando pela calçada molhada - chovera durante a madrugada - e fria. As pessoas olhavam estranho pra mim, quando entrei no beco. Bati à porta e perguntei se conseguiria ali.

"Tem certeza que quer?"

Eu sabia a resposta. Só não sabia o que viria depois.

SA 3

...Eu sempre respondo: Tudo bem, tudo bem, eu faço.
Só que eu não sei o que esperam de mim, o que querem que eu faça, o que querem que eu seja pra eles. E isso me enche, sabe? Me dá vontade de ir na esquina e ficar encostado no poste, enquanto eles procuram pela pessoa que faria aquilo. Não por mim, eles não procuram por mim. Eles perguntam:

"Quem era o responsável por isso?"

Tô pra ver o dia em que dirão: "é aquele ali na esquina".

sábado, junho 28, 2008

SA 2

Não, não crio expectativas. Não me encho de esperanças. Organizo, preparo, e vou em frente.
Mas em vez de projetar, eu preciso ir além. Em vez de ser designer, agir como artista. Só pra quebrar o gelo.

Não, quebrar o gelo, não.

Nele esculpir o mais belo e pomposo cisne que já durou mais de um século nessa terra fria.

quinta-feira, junho 26, 2008

SA 1

É, eu sou um viciado. Mas não sei como vim parar aqui. Tá tudo tão turvo.
As coisas não podiam estar piores. Mas não estão, estão ótimas. O que está horrível é ter que aceitar a parte da bad trip. Pelo menos até o good arrive.

domingo, maio 25, 2008

Don Juan

- Louco? Não, louco não. Tenho dificuldades em me concentrar na realidade como deve ser vista. Também não é como sob efeito de drogas.

"É como se, a cada minuto, raios viessem do nada, e incessantemente me pusessem à prova, não a mim, e sim à minha concepção de real, do Real. Mas eu não vejo raios. E não saio da realidade. Já tentou ouvir alguém falando por muito tempo, e perdeu a concentração com uma mosca? Pois é. Imagine isso a cada segundo, e não só com alguém falando. E não só com uma mosca. Esse é meu problema. E, incrivelmente, ao não me concentrar em nada, me concentro no todo de uma forma dinâmica.

"A vida passa como passam os segundos, e eu vejo universos nascerem e morrerem nesse tempo. Não enxergo bem, tenho patologias como miopia. Mas enxergo longe, pois não me atento ao que está à minha frente. Nem ao que está atrás disso, não, só me atento ao todo, já disse! Já disse! Então como posso viver desse jeito? Trabalhar, ganhar dinheiro? Não sei, não lembro de meu trabalho. Já fui carpinteiro, pintor, piloto. Já fui jornalista, assassino, empresário. Já fui estudante, ladrão, comerciante.

"Nunca compreendi as coisas quando elas me apareceram; mas você também nunca viu universos nascerem ou morrerem."

quarta-feira, maio 14, 2008

FIM.

Então... dificuldades existem, mas...pra quê?
Para serem superadas, dizem uns. Hahá. Ou para dizerem:

Desculpa, Dimitri, mas hoje não foi teu dia.
Tô escrevendo isso... Será que assim meu mundo me aparece?




Não.

domingo, maio 11, 2008

A imagem, o homem

"Se você não me ama, me deixe ir.
E eu sou um escritor de ficções
sou o coração ao qual você chama de 'lar'

E escrevi páginas e mais páginas
Tentando te livrar de mim

Solte minha mão, por ternura
E não me torture mais.

E eu sou o escritor de ficções
sou o coração ao qual você chama de 'lar'

E eu sou o escritor, sou tudo que você esperava.
Mas se você não me ama, me deixe ir."

E ele se tornou uma imagem, uma idéia. E diferente de todos os que fazem uma idéia para ser, ele sim, conseguia estar à altura dessa idéia. Mas ninguém comprara essa idéia, e ele acreditou que era por que ninguém gosta de uma idéia quando alguém consegue cumpri-la.

E morreu feliz.

Decemberists - The Engine Driver (adaptado)

sábado, maio 10, 2008

O Escaravelho

Estava sentado, com uma blusa de veludo vinho e uma calça verde, meio brilhante, mas não era de vinil. Era só um jeans, normal. Ele fumava muito, e eu me perguntava o motivo. Não podia ser só charme, até por que ele terminava tossindo bastante, fazia mal. Por que fumar, então?

Geralmente ele vive rodeado por pessoas, bebendo, mas não naquela noite. Ele estava sozinho, sentado e tomando um refrigerante. Acho que tinha acabado de chegar, e eu tive essa sorte. Ele havia colocado um jazz na jukebox, Chummy Macgregor, e só batia levemente o pé no chão.

Sua mesa ficava à frente do balcão, e foi pra lá que me dirigi, após pedir licença às amigas. Peguei uma cerveja e sutilmente comecei a dançar; era mais um balanço. Mexia-me suavemente de acordo com a música, de costas pra ele. Infelizmente, seu telefone tocou na hora e ele não notou a performance.

Ele atendera com uma expressão desconfiada, mas logo identificou a pessoa que ligara, e sorriu desajeitado. Quem diabos seria? Uma mulher com quem saía? Pior, uma que iria encontrá-lo no bar? Desligou, deu um último gole no refrigerante e gritou pedindo uma cerveja. Aliás, tentou gritar, mas sua voz rouca não o permitiu ser ouvido pelo garçom.

Aproveitei e fui eu mesma levar a cerveja em sua mesa, arriscando tudo...

quinta-feira, maio 08, 2008

Insônia de há anos.

Já eram três da manhã e ele não tinha dormido. Duas horas deitado no quase absoluto escuro, e nada do sono chegar. Não era insônia, nem pensava em coisas demais. Ele estava sem sono, apenas. Acostumado a dormir cerca de três horas por dia, na noite anterior dormira sete ou oito. E bêbado. Não conseguiria.

De olho fechado, revirava-se na cama, entre um trago- e outro. E exatamente entre um cigarro e outro, abriu os olhos. O que viu foi um clarão, iluminando a totalidade outrora nula de seu quarto. Alguns feixes repetidos, claros, como um flash. Alguns segundos depois, o trovão rasgava o quase-silêncio criado pelo hipnótico barulho do ventilador.

Seguindo este, outros vieram, relâmpagos e trovões, e ele ficou de olhos abertos, fumando e olhando para a janela de vidro fosco, que fechada, apenas permitia a visão dos clarões e do escuro. A chuva não havia ainda começado, e a cena lhe agradava. Coberto até a cintura, ele mexia as pernas pela agitação e excitação de esperar o momento da água cair. Continuava fumando.

Ao terminar o último cigarro, sorriu. Ninguém perceberia esse sorriso, seus dentes. Jamais alguém saberia que ele sorrira neste momento. Chegou a ouvir até alguns de seus próprios gemidos de alegria no sorriso. Como o presságio de uma gargalhada. Não passaram disso. Às três e quarenta, a chuva começou.

E ele desistiu de dormir, levantou-se e foi trabalhar.

segunda-feira, maio 05, 2008

Recompensa bruta

Houve um tempo, antes de cidades saberem sobre outras cidades, que uma destas prosperava mais do que a maioria. A cidade crescia a cada dia, em todos os sentidos. Os habitantes adicionavam duas fileiras de tijolos a cada rua que a circundava. O comércio sempre tinha mais material para vender, e a freguesia, mais dinheiro para comprar. E, claro, a cada dia, nascia cerca de um bebê, que viria a se tornar um novo habitante, e que iria comprar, vender e adicionar tijolos às ruas da cidade.

Para aquelas pessoas, a sua cidade era única. Fora dela só existiam desertos ou florestas, monstros ou comida, água e pedras. As pessoas não procuravam por outras cidades. Sequer imaginavam que existiriam. Mas justamente por crescer, por aumentar, elas começaram a enfrentar as dificuldades que as separavam do que quer que existisse do outro lado. Alguns percebiam que havia mais comida do seu lado da cidade, e quando ia adicionar sua parte nos tijolos da rua, colhiam mais vegetais e matavam mais faisões, ficando mais ricos e mais gordos.

Outros notaram que do seu lado, a água era mais fresca, e aumentavam suas cisternas para armazenar mais água, que seus filhos herdaram. Alguns, de outro ponto, tiveram que enfrentar mais monstros, e se tornaram ótimos guerreiros. E foram passando seus conhecimentos táticos e bélicos para os descendentes.

Já os que cresciam pro lado do deserto, tiveram que passar por maus bocados, que os forçaram a aperfeiçoar a pavimentação de forma que concluíssem seus projetos antes do tempo, para não passar fome, sede, ou enfrentar monstros noturnos. E estes, embora tenham perdido mais tempo devido às mortes no início da empreitada, logo concluíram o projeto. E chegaram a outra cidade. Após a surpresa e curiosidade iniciais, as cidades passaram a fazer comércio. Os habitantes dos outros lados pararam de trabalhar na expansão territorial, e corriam para este que era o do mercado. Pagavam então altos pedágios aos pavimentadores, que finalmente recebiam as justas recompensas por seu trabalho.

Quando, num dado momento as cidades guerrearam, os primeiros a morrer foram os pavimentadores.

sexta-feira, abril 25, 2008

A Cavalgada do Nada

ou Como Ele Não Quebrou o Paradigma

Sempre me incomodava na mesma hora, na madrugada. Eu sentava debruçado sobre a prancheta, projetando à vontade. Por volta das duas da manhã, começavam os trotes. Lembro hoje da primeira vez. Eu tinha acabado de pegar café, e não terminara nem de me sentar corretamente. Do meio da rua, escuto um trote. Pesado, como se houvessem duas pessoas em cima do cavalo. Achei estranho, àquela hora, no meio da cidade, duas pessoas andarem de cavalo às duas da manhã, mas deixei pra lá. Continuei a desenhar.

Alguns minutos depois, mais uma vez o trote. Novamente pesado, na mesma velocidade. Não estava correndo, correndo mesmo. Nem parecia uma fuga. Era apenas um passeio acelerado, mas eu continuei achando estranho. Existia uma favela alguns quarteirões abaixo, mas não era possível. Saí da prancheta, subi as escadas e olhei pela janela: nada. O barulho já se distanciava, mas a rua estava deserta. Vazia. Voltei à prancheta, mas aquilo me incomodou. Bebi mais um gole de café, e acendi um cigarro, olhando para os pôsteres de cinema dos anos 40. Não me concentrei em nenhum, em particular.

Quando o cigarro estava por acabar, decidi ir à janela novamente. E eis que começa a surgir, baixinho, mas depois aumentando como que passando em minha frente. Mas eu não via nada! O trote vinha do lado esquerdo da rua, e da janela, eu não podia ver o seu final. Mas logo o barulho chegou a vir como se o cavalo e seus dois cavaleiros estivessem em minha frente. Mas nada aparecia. Comecei a me assustar. Por fim, à direita, o barulho diminuiu até sumir, e eu estava curioso, intrigado, mas o temor havia me deixado.

Não saí de casa para descobrir, mas não por medo; por preguiça. Tinha um projeto para terminar ainda àquela noite.

E por isso o trote continua me incomodando. Sempre, às duas da manhã. E eu sempre volto à janela, pra ver o nada cavalgar sobre os paralelepípedos da rua em frente à minha casa.

domingo, abril 13, 2008

...and I'll disappear.

É quando a chuva diminui, mas os trovões aumentam. Significa que vai piorar. E aí vai começar a cair pedaço do céu! Pedaços meio azuis. E vai ficando escuro, tudo escuro e tudo frio. E esse vai ser o melhor momento pra subir no telhado mais alto que você encontrar. Vai olhar pro céu cinza, com buracos pretos. Melhor tirar a camisa, e levar essa chuva no peito. Aí você vai abrir uma cerveja. Acender um cigarro, e fumar com cuidado pra não molhar.

E depois, disappear.

domingo, abril 06, 2008

O que você quer?

E pra piorar a situação, ele não se sentia atraente. Agradável. Ele sabia trabalhar bem com palavras, mas não achava isso suficiente pra si. Esperava que as pessoas procurassem charme. Beleza. E ele não se sentia como se tivesse isso.

Descobriu então que a saída estava em se mudar. E passou a procurar um lugar no mundo onde as pessoas não quisessem isso. E sim habilidade com as palavras

Encontrou, mas decidiu não ficar. Achou os habitantes meio feios.

quinta-feira, março 27, 2008

Cultura Popular

me sinto doce por dentro; saudável. sadio. sarado.
interminável, insaciável. me sinto forte. sou completamente doce. seu.
ao natural, totalmente ao natural, ou do jeito que você me quiser.

pois na sua boca eu viro fruta. chupa que é de uva.

terça-feira, março 25, 2008

Falta do quê.

Bate aquela falta do que falar
do que fazer
o quê.

Só dá vontade de dizer
de trazer
o quê.
Você?
Não, você mais não. Mais nada, mais ninguém, nunca mais.
Nunca mais por enquanto. Deixa eu voltar a ser.
A ser?

o quê.


Hold me closer
let me be
Hold me closer
let me go away.
~ STP - Ride the Cliché

domingo, março 16, 2008

Sete e final.

Pepe gosta de viajar. É tão simples. Não, não é tipo uma resposta a um formulário, como "quem é você?" e "alguém que gosta de viajar”. Não, ele é mais que isso. Mas no todo, tem isso. Pepe gosta de companhia, gosta da companhia de várias pessoas. Algumas em particular, ele se importa mais. Ele não gosta de ser, estar ou ficar sozinho. Mas antes de tudo, ele gosta de viajar.

Então o que acontece quando ele vai sair de onde está, passar pra outro mundo? Acaso ele quer alguém que o acompanhe? Não. Antigamente, Pepe gostava. Ele fazia de tudo para que as pessoas o acompanhassem. A companhia delas podia se estender por mais tempo, existir mais. E isso fazia Pepe existir mais. Ele chegava a uma cidade, conhecia várias pessoas, e de repente, construía uma idéia ao redor delas. Quando chegava a hora de partir para outra cidade, Pepe até oferecia carona a uns ou outros. Poucos aceitavam, mas os que iam, gostavam.

Mas houve momentos na vida de Pepe que ele precisava estar só. Para conhecer outras pessoas. Para fazer novos amigos e construir novas idéias. Ele tinha objetivos que precisava cumprir só. E suas companhias não entendiam isso. Não acreditavam que ele viveria algo sozinho. Pepe não podia sequer dormir só. Desenhar só. Então chegava um momento que ele dispensava as companhias. E com a separação, vinha a dor. A agonia de interromper uma companhia, a situação que Pepe sempre adiava o máximo possível.

Ele passava um bom tempo chateado pelo fato de que as idéias que construíra por um tempo se tinham ido. Era desestimulante e desanimador saber que ele iria perder tudo que construíra. Mas Pepe logo chegava a outra cidade, e conhecia novas pessoas. Era tudo maravilhoso, e o tempo que dedicava a pensar nas idéias antigas diminuía - claro que não se extinguia, mas diminuía bastante. E quando chegava a hora de partir novamente, Pepe não oferecia caronas. Ele sabia o que poderia acontecer. Mas depois ele se sentia solitário, e tudo começava novamente. Pepe não era uma pessoa sozinha.

Esse era um ciclo que se repetia sempre. E, como tudo na vida, dava experiência a Pepe. Depois de algumas voltas, ele já demorava mais para se sentir seguro o suficiente para oferecer caronas, e eventualmente, o dia chegou. Chegou o dia em que Pepe entrou em uma cidade no anonimato, e não construiu idéia alguma. Chegou, sentou só, bebeu só, brincou só, desenhou só. E partiu só. Não queria mais companhia alguma. De pessoa alguma. Seria doloroso demais ter que se despedir novamente. O contato que Pepe fazia com qualquer pessoa se tornara fútil e superficial. Às vezes ele até mentia o nome. Eu sei disso. Descobri recentemente que o nome dele não era "Pepe".

"Meu Amigo, tu não és meu Amigo, mas como te farei compreender? Meu caminho não é o teu caminho. Contudo juntos marchamos, de mãos dadas."
~ Gibran

quarta-feira, março 05, 2008

Seis.

Ele tinha problemas com o pai. Na mesa de jantar, na sala de estar, nas viagens e passeios. Os irmãos se davam bem, entre si. Eram dois, e ele amava cada um dos dois. Só que os dois amavam o pai como amam ao céu, mas ele não. Ele era diferente. Seu pai não era seu céu.

A irmã mais velha estudava música. Tocava violoncelo, e o pai adorava aquele som. Ela fazia parte da frente juvenil da sinfônica da cidade, e ele se orgulhava em espalhar aos ventos. O mesmo se dava com seu irmão, contador recém-formado. Já tinha emprego com uma ótima remuneração. Ele era o mais novo, e não sabia sequer que faculdade cursar. Antigamente, era uma pauta para as discussões à mesa. Mas não acontecia mais. Quando ficavam juntos à mesa de madeira da sala de jantar, uma nuvem negra e pesada invadia a sala. Até sua mãe ficava irritadiça. O cachorro sequer vinha pedir comida.

Seu pai e seu irmão foram, uma noite, assistir à apresentação da violoncelista. Fora obrigado a ir também, mesmo não gostando do estilo musical tocado. Sentaram-se os três, com o irmão-contador se colocando automaticamente entre os dois, para evitar maior contato. No meio da apresentação, o pai chorava. Chorava de orgulho, ao ver sua filha despertando tanta emoção na platéia e em si; era algo belo, e instigava os sonhos de quem ouvia.

Mas não nele. Ele não conseguia sentir o calor despertado em tantos. E isso o irritava e, ao mesmo tempo, lhe dava uma sensação de ser superior. Era como uma compensação: não o sentia, mas ao menos não era fraco, por isso.

Seu pai percebera esses sentimentos, e quando a noite acabou, gritou com ele. Deveria ser sensível à situação, ter um catching para compreender como é bonito o que a irmã fazia. Ele então perguntou o quanto o violoncelo adicionava à renda familiar, e seu pai o bateu. Mas parou e percebeu. Ele era sensível. Não queria escolher um trabalho que não colaborasse com a família. Queria agradar o pai.

E tinha apenas quinze anos, o garoto.

"Amas a Verdade, e a Beleza, e a Retidão. E eu, por tua causa, digo que é bom e decente amar essas coisas. Mas, no meu coração rio-me de teu amor. Mas não
gostaria que visses meu riso. Gostaria de rir sozinho.
"
~ Gibran

segunda-feira, março 03, 2008

Cinco.

- ...Não é mais algo que a gente possa fazer. Já é a quarta vez que acontece, e eu sempre me dou mal e você sai ileso.
- Como assim ileso?!
- É, isso mesmo! Toda vez é isso: a gente vai, faz, e depois eu descubro alguma sacanagem tua. Algum vacilo teu. E fico puto, vou embora como o babaca da história, e tu sai ileso.
- Mas como assim, ileso, po?!
- Ileso, ora! Não acontece nada contigo, ninguém te acha babaca, ninguém te condena! É sempre...
- Não, eu não saio ileso. Calabocaporra. 'Xeu falar: Enquanto você vai lá, mudando sua vida, passando por cima de tudo, dando a volta por cima... Enquanto você pensa que "mais uma vez" eu te enganei...Enquanto você cogita a possibilidade de não mais olhar na minha cara. Eu não saio ileso.

Eu fico aqui, com medo da possibilidade de tu nunca mais olhar na minha cara. Devastado por saber que mais uma vez eu cometi um erro, e por ser tão idiota e desastrado, tu tá aí pensando que eu sou um filho da puta que te sacaneia. Destruído por saber que tu tá reconstruindo tua vida por saber que eu sou um destruidor.

É melhor você fazer isso. Sair, me deixar a sós com esse sentimento, e construir uma vida boa longe de mim, sem fazer mais isso.

Mas não pense que pra mim vai ser uma tarde no paraíso se isso acontecer.

"Quando é dia contigo, meu Amigo, é noite comigo. Contudo, mesmo assim falo do meio-dia que dança sobre os montes e da sombra de púrpura que se insinua através do vale: porque não podes ouvir as canções de minhas trevas nem ver minhas asas batendo contra as estrelas – e eu prefiro que não ouças nem vejas. Gostaria de ficar a sós com a noite."
~ Gibran

quinta-feira, fevereiro 28, 2008

Quatro.

Hoje seria o último dia, e ela estava mais que satisfeita. Quatro anos, mais impostos. Impostos, mesmo. Ela não queria ter que passar aqueles três meses de greve. Mas conta como quatro anos, só. Pra que servem as férias? Era o último dia de aula, e ela nunca mais teria que entrar ali novamente. Talvez mais uma ou duas vezes. Se formara, e não fizera amizade com ninguém de sua turma.

Desde que entrou, se esquivava de todas as tentativas dos colegas. Sentava só, no canto da sala. Fazia trabalhos individuais, e quando obrigada, sequer trocava mais palavras que as necessárias para o cumprimento correto da tarefa. Ir a festas da turma era fora de cogitação, e comemorações, jamais. Assim que o professor encerrava a aula, ia direto pra parada de ônibus em outra avenida, pra não correr o risco de pegar o mesmo ônibus que algum colega.

Faltavam poucos minutos para o fim da "aula da saudade". Os professores falaram, falaram e ela não prestara atenção. Não, em vez disso, analisou cada um dos colegas de turma. Pensou nas amizades que teria perdido, nos bons momentos que jamais vivera, ou viveria. Conversas, confissões. Pensou que alguns poderiam vir a ser seus amigos de verdade. Talvez um melhor amigo.

Talvez um namorado, ou namorada. Talvez um marido. Uma amante. Alguém, ou algumas dessas pessoas teriam sido especiais. Se ela deixasse.

Então ela percebeu que poucos olhavam para os professores também. A maioria olhava pra ela. Pensavam a mesma coisa?


"Não podes compreender meus pensamentos, filhos do mar, nem eu gostaria que compreendesses. Gostaria de estar sozinho no mar"
~ Gibran

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Três.

É simples demais. Ela sai do banho, vai em direção ao espelho, mas não se olha. Não, não o todo. Ela olha os detalhes: checa a maquiagem, coloca sutilmente lápis sob os olhos, os brincos corretos, o piercing, o cabelo. Odeia o cabelo. Tenta dar um jeito, põe uma tiara, uma piranha. Odeia o cabelo. Solta tudo e vai assim mesmo.

Tira a toalha e liga o som. Dança um pouco, nua, no quarto, sozinha. Mas a janela continua aberta. Vai então ao guarda-roupa. Displicente, nem presta atenção no que tira. Faz parte do ritual. Uma calça jeans e uma blusa branca, básica, baby-look. Apenas de calça, passa a música. Prefere a três.

Põe o sutiã e calça o all-star. Vermelho e sujo, bem sujo. Então, vestida assim, de jeans, sutiã e all-star, volta ao espelho. Mexe novamente no cabelo, e decide prender num rabo-de-cavalo. There. There you go, girl. Põe a blusa, e acha que ela ficaria legal com uma camisa por fora... Mas não veste. Pode ficar calor.

Ele buzina às dezoito. Ela pula, entusiasmada! Louca pra ver o fusca novo! Ele falou sobre esse carro a semana inteira, enquanto tentava seduzi-la. Hah, não sabia ele que ela é que o estava seduzindo. Sem querer, claro.

'Xa explicar: É sempre assim. Ela conhece o cara, na rua, numa festa. Sempre um amigo duma amiga. Um amigo dum amigo, tanto faz. Se interessa, mas não faz nada. Não cria nada - é sempre assim. E aí, eles se encontram em outro ambiente, em outra atmosfera... E começam a conversar. Quando ela adquire cemporcento de certeza sobre o interesse dele... Ela aprofunda o modus operandi.

Ela insinua, ela provoca. Ela o traz a seu mundo. E procura compreender o dele. Regado a lascívia e romance, ela o torna seu. Descobre seus desejos e os cumpre. Seus medos e os teme. Depois os enfrenta. É quando as atmosferas se fundem de vez, e ela descobre que ele é mesmo seu. O trabalho agora é exigir os espólios. Ela vencera novamente.

Ela continua a cumprir os desejos dele, e temer seus medos. E enfrentá-los. Desejos e medos. Depois ela joga fora.

Mas não hoje. Hoje ela desce as escadas, e ao vê-lo em frente ao fusca, bonito, trabalhado, ela vibra. "Ele fica tão lindo assim, feliz por ter conseguido esse carro", pensa. "Gosto tanto dele".

E é verdade.

"Meu Amigo, não queria que acreditasses no que digo nem confiasses no que faço – pois minhas palavras são teus próprios pensamentos em articulação e meus feitos, tuas próprias esperanças em ação."
~ Gibran

quinta-feira, fevereiro 21, 2008

Dois.

- MÃE, me diz de novo o porquê.

Em mais ou menos vinte e quatro horas, essa era a décima quinta ou décima sexta vez que ela perguntava isso. "Papai do céu o queria perto dele, filha". Era essa a resposta que a mãe, sem nunca cansar de dar, repetia sempre. Talvez por que respondesse a si mesma.

Câncer. Não, não foi disso que ele morreu. Era o apelido dele. Ele fumava horrores, e o cigarro o matou. Não, não foi câncer ou alguma outra doença relacionada ao cigarro. Ou drogas. Um homem lhe pediu um cigarro, e ele deu. Mas o homem desconfiou de sua boa-vontade e enfiou dezoito balas nele.

"Eu não sou uma pessoa boa" era a frase que mais repetia. E realmente, pra muitas pessoas, não o era. Pra si mesmo, menos ainda. Mas era um bom pai. Sua maior vantagem era ter sonhos. E encorajar todos a perseguir seus próprios.

Mas seu maior defeito era não fazer o mesmo. Desistir era seu lema, principalmente quanto ao seus projetos. E foi isso que colocaram em sua lápide. "Um sonhador que agora sonha para sempre".

No dia do funeral, sua filha deixou cair uma flor, e esta voou até o outro lado do descampado. Para pegar de volta, teria que pisar em alguns túmulos. Olhou com cara de preocupada para sua mãe, que tranqüila e serena lhe aconselhou:

"Se você tiver respeito, pode pisar". E disse isso enquanto pisava nos próprios sonhos que, agora, sabia que não iria seguir.

"Meu Amigo, o Eu em mim mora na casa do silêncio, e lá dentro permanecerá para sempre, despercebido, inalcançável"
~ Gibran

Um.

ERA A OITAVA VEZ que ele se dirigia ao parque. "Hoje eles vão estar lá" era a palavra de ordem individual. Sua própria palavra de ordem. E ele tinha o seu próprio Jesus, em relação a isso. Era um amigo próximo, que o ajudava e dizia "vá hoje, mas vá com amor, não vá pensando nada de errado". E ele ia. Estava indo há semanas.

Quando chegou na metade do caminho, seu coração acelerou. O estômago gelou. Olhos abertos, como que surpreso por eles estarem lá. Havia se acostumado com a ausência deles, mesmo acordando toda semana e indo ao parque na esperança de encontrá-los. E preparara-se também com o amor no coração. O amor do qual seu amigo falara. Depois de alguns segundos (minutos?) parado, olhando assustado, ele foi.

Ao chegar, olharam-no com desconfiança. Claro. Ele mesmo chegava com desconfiança. Mas depois de algum tempo, foram percebendo que ele queria se aproximar, conhecê-los. Eles estavam prontos para isso, novas pessoas chegando. Preparados para o ingresso de iniciantes. Iniciá-los.

Mas ele adotou automaticamente uma postura de desprezo, orgulho, ironia, abuso e impaciência.

Afastou-se automaticamente, quando tudo que queria era se aproximar deles.

"Meu Amigo, não sou o que pareço. O que pareço é apenas uma vestimenta cuidadosamente tecida, que me protege de tuas perguntas e te protege da minha negligência"
~ Gibran

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Onze horas. A escuridão era afugentada de seus próprios domínios por diversas luzes que, inicialmente, não pertenciam ao ambiente. Desde o princípio, um tipo de iluminação diferente cortava, aos raios, o feixe negro que a noite derrubava, e era uma luz permanente, serena, constante.

Mas logo algumas luzes intermitentes, porém firmes, chegaram e mudaram a situação. Naquele momento, ondas de cores brilhantes iluminavam, amarelas, vermelhas e laranjas. A superfície, reflectiva, pontuava. Eram spots claríssimos, como uma bola pulsante, ou eram como os de um farol, que começavam em um dos lados - não se sabe se esquerdo ou direito - e terminavam no outro. Estes últimos eram vermelhos.

Subitamente, as luzes vermelhas e amarelas cessaram. O carro do resgate desligava a sirene e se retirava, em direção ao necrotério.

domingo, fevereiro 17, 2008

Ivan e suas dificuldades.

Com uma formação voltada para o controle financeiro - tesoureiro do grêmio, secretário de finanças do Diretório Acadêmico, técnico em captação de recursos -, Ivan virou um profissional das ciências contábeis. Claro, seus pais sempre incentivaram.

- Quando você cuida do dinheiro de outras pessoas, elas sempre te pagam o suficiente pra que você não leve nada pra casa.

Ivan sabia muito sobre o tesouro das pessoas. E tinha, a bem da palavra, o seu próprio. Através de poupanças, descobriu um jeito de manter uma pequena fortuna, para não precisar de mais nada no futuro. Mas precisava. Precisava de muita coisa.

Ivan não tinha o ponto social do cérebro bem-desenvolvido. Nasceu sem essa capacidade. Até conseguira algumas mulheres em sua cama, na juventude. Alguns companheiros de bar, todos do trabalho. Mas conseguira tudo isso através de cálculos. Análises de probabilidade.

Ivan era bom nisso. Uma vez, impediu um atropelamento ao jogar uma sanduiche pra um cachorro. Quando viu que o carro iria bater num garoto de dez anos que saíra pra passear com o animal, reparou que este pertencia a uma raça costumeiramente brincalhona, e arremessou o lanche fazendo com que o cachorro corresse atrás, puxando o garoto para longe do perigo.

E era assim que Ivan conseguia as garotas. E os amigos. Analisava o ambiente, observava suas ações. Planejava e esperava, até o nível alcoólico ideal para tomar uma atitude.

Mas nunca se apaixonou, nem conquistou o coração de ninguém. Ivan nascera, como dito, sem essa propriedade do cérebro. Caso clínico, mesmo. Provavelmente, depois que ele morrer, a ciência descobre uma cura para isso. Mas não antes. Não, Ivan nunca vai se apaixonar nem conquistar o coração de ninguém.

Na realidade, a história se confunde. Já ouvi gente dizendo que Ivan jogara o lanche para que no final, o garoto fosse atropelado. Aos dez anos, sem nunca se apaixonar ou conquistar o coração de ninguém.

http://www.fotolog.com/bizarros/30893497

sábado, fevereiro 09, 2008

Sub-real.

Ao acordar, olhei para o relógio do lado da cama: sete da noite. Não lembrava de nada que tinha acontecido nas oito horas anteriores a isso, quando há nove, estava tomando café com uns recém-conhecidos, no centro. Acha isso estranho? Imagina quando eu percebi que não era o meu relógio? Nem minha cama?

Tive medo. Várias histórias, lendas urbanas sobre gente que é drogada, levada para hotéis e perdem os rins ou algo do gênero. Olhei por todo o meu corpo, e pra um breve e pequeno alívio, estava inteiro. Fui ao espelho pra conferir o resto, e percebi que não estava mal, apesar das olheiras, mais profundas e escuras do que jamais tivesse visto sob meus olhos.

Tratei de me vestir rapidamente, e corri para o lado de fora. Na sala, apesar do escuro e do frio, tudo parecia normal, mas irreconhecível. Nunca pisara naquela casa. Ou seria apartamento? Antes de sair, deduzi que estivesse vazio, e preocupadíssimo, fui à cozinha.

FUI AO BAR, MAS VOLTO JÁ.

ME ESPERA.

A ausência do imperativo no bilhete pregado na geladeira me tranqüilizou um pouco mais, mas decidi não "esperar". Corri pra fora do apartamento, e desci as escadas. Desci doze andares antes de esbarrar com uma mulher estranha, bastante pálida e com olheiras piores que as minhas. À luz intermitente e branca da escadaria ela se tornava preocupante, embora não assustadora. Era inofensiva, achei, e aparentemente, se assustou mais comigo que eu com ela. Sua expressão de surpresa ao me ver deixou-me intrigado.

"Licença", e continuei a correr descendo, mais dois andares, até atingir um belíssimo e barroco hall, cheio de espelhos, luminárias (quebradas) ornamentadas, e anjos e santos de madeira pintados de dourado. A tinta descascava e o ambiente estava pouquíssimo iluminado, mas eu percebi. Eram todos pintados de dourado. Percebi também que na guarita da portaria não havia um porteiro. Bem, o portão estava aberto, então, sem hesitar, corri até o fim da rua, sem nem fechá-lo.

Já escurecera, mas a rua estava movimentada. Bares abertos, pessoas entrando e saindo, assim como das lojas e lanchonetes. Percebi que continuava no centro, embora muito longe do lugar onde eu estava tomando café, há... meu deus, onze horas! Duas horas se passaram. Desde que acordei e me dei conta. Conta de quê? do bar? Meu deus novamente! O bar! Ele poderia estar em qualquer um destes bares, meu captor. Me observando e percebendo que não segui sua recomendação:

ME ESPERA.

O que faria para me punir? Podia ser qualquer um deles. Daqueles bares, das lanchonetes. Me puniria por ter saído, por não ter esperado. Corri o mais rápido que pude, parei o mínimo que consegui - mesmo assim foram muitas vezes. O cigarro, sabe? Corri até ficar num ambiente que conhecia vagamente, algumas ruas pouco movimentadas do bairro velho, no centro. Aí não aguentei. Sentei em uma barraca onde vendiam bebidas e pedi um refrigerante. Uma coca cola.

De repente, as poucas pessoas que estavam na rua começaram a andar, assustadas. Andaram rápido, os putos. Com medo, olhando para trás. Resolvi olhar também, para o fim da rua, e vi vários marginais, não destes que moram nas ruas, eles mais pareciam ter saído de um filme repleto de morros, traficantes e capangas, com roupas da moda de camelô, cabelos pintados e bonés roubados.

Eles não corriam, mas não precisavam. Sua presença, seus sorrisos maldosos, suas piadas e gargalhadas indicavam suas intenções. E assustavam. Mais de dez. O dono da barraca me aconselhou a correr também pois ele iria fechar e se trancar lá dentro, mas antes que eu pudesse me levantar do banco, percebi que não estava enxergando direito. Não enxergava mesmo, apenas as luzes e vultos desfocados. Embaçados.

- Sabe a sensação de quando você acorda depois de uma farra onde, gripado, tomou todas, fumou todos, e dormiu por doze horas seguidas? Os olhos despertam cheios de secreções, úmidos, irritados, cansados, como que com conjutivite? Era isso, mas pior. Bem pior. Eu não enxergava mais os bandidos, nem o dono da barraca. Só via um espectro de luz emitido pelas lâmpadas fluorescentes daquelas compridas, atrás das bebidas. E ouvia as gargalhadas.

Quando decidi sair dali, percebi que não era apenas mal-estar e vista prejudicada. Não conseguia andar também. Presumi que poderia correr para fora da rua, e entrar numa perpendicular que sabia estar movimentada e segura, mas depois de uns três passos cambaleantes e errôneos, fui perdendo as forças nas pernas. Caí lentamente, joelho por joelho, sentindo o peso de vinte elefantes em minha cabeça, em cima de mim. Deitei com a bochecha no chão, sentindo a rala areia por sobre os paralelepípedos entrar em minha boca. E as gargalhadas aumentaram, aumentaram, ficando mais próximas.

Até hoje não sei o que aconteceu depois.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

À Igreja.

Ela decidiu então, entrar descer pelos degraus da margem. A maré estava baixa, eles poderiam se esconder embaixo da ponte, enquanto as coisas esfriavam. Que entendia ela de maré? Puxou-o pelo braço, que segurava desde o começo da fuga, e gritou "aqui", pra que a seguisse. Ele seguiu.

Quando chegaram embaixo da ponte de concreto, ouviram as sirenes. Os fogos... Ou seriam balas de borracha? A gritaria aumentara, enquanto o carro-de-som cessara. "Já tá anoitecendo", disse, mas ele continuava ofegante. Balas de borracha doem, mesmo por sobre tecido grosso da jaqueta. Ela não tinha levado nenhuma, mas um estilhaço duma das bombas atingira seu braço. Sangrava um pouco.

Ele desamarrou o lenço do joelho - meramente estético -, e com ele estancou a ferida da moça. De repente, o telefone vibra, e ele vê que era um dos camaradas. Depois de alguns monossílabos, desliga, e conta pra ela. O pessoal estava detido em frente à igreja.

- Temos que ir lá, mas não vestidos assim.

Juntando o suspensório com a jaqueta, formam uma bolsa. Guardam algibeiras, braceletes, spikes, colares. Enquanto ela pendura a bolsa improvisada numa saliência da ponte, ele cobre a cabeça raspada dela com um boné. Estão menos extravagantes, o que é apenas um eufemismo considerando o visual anterior. As sirenes não param, mas isso não os impede. Se levantam e começam a galgar de volta à rua.

Ele sobe primeiro, e a ajuda a subir o resto. Estavam longe dos degraus. Quando ela vê a cabeça dele cair um pouco para o lado enquanto os olhos reviravam, é tarde demais. A mão dele afrouxava, e ela voltava a cair na lama da margem do rio, enquanto a maré lentamente subia. Olhando de volta pra cima, ela vê as luzes da sirene, e o braço dele desaparece da margem, pra que depois ela veja o corpo inteiro sendo erguido por quatro policiais, completamente de preto.

Quando consegue subir pelos degraus, ela vê as manchas de sangue no chão, e a viatura saindo lentamente do espaço onde estava há poucos minutos. Mas o carro não avança muitos metros. Um módulo é arremessado de cima do prédio abandonado, e, caindo bem em cima do teto, instantaneamente explode. Um Coquetel Molotov. Apenas os quatro policiais deixam o carro e correm pra dentro do prédio. Ela não o vê saindo da viatura em chamas. Corre para ajudá-lo, e de frente para a porta, o vê ainda desacordado, e algemado.

Na escada do prédio, os dois garotos arremessam móveis velhos e tijolos quebrados nos policiais, que irropem com fúria sobre eles. Infelizmente para os militares, mais jovens continuam subindo a escada, e eles logo se vêem cercados.

Na entrada do prédio, jovens ensagüentados ajudam a garota a retirar o jovem, já consciente, de dentro do carro.

Seguem todos rumo à igreja, onde os outros estão detidos.

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

À esquerda do rio.



Seis deles estavam parados, na margem do rio. Seis, numa pose que, ou já estão acostumados, ou têm resistência pra manter.

- Um estava sentado em cima da grade de proteção, com as pernas dobradas cobertas por calças do exército, e as botas militares, pretas e pesadas, apoiadas no ferro que servia de apoio entre o corrimão e o chão.

- Outro, com as costas e os cotovelos no corrimão, segurando um cigarro, e com as pernas cruzadas, olhando pro outro lado.

- A garota, com a cabeça toda raspada exceto pela franja cor-de-rosa, acendia um cigarro e sentava encostada nas pernas deste último, como que demonstrando "estar" com ele.

- O que aparentava ser mais velho também era o mais ortodoxo. Uma camiseta branca, suspensórios vermelhos, a calça preta folgadíssima, e as botas por cima. A cabeça, toda raspada, com uma tatuagem que vinha até a testa. Terminava em três setas vermelhas, acima dos olhos. Estava de pé, ereto, com as mãos no bolso. Viril.

- Os outros dois estavam agitados, andando de um lado pro outro, brincando de boxe. Também usavam suspensórios, cabeça raspada.

Só o primeiro, com as calças do exército, que tinha um pouco de cabelo, que terminava numa franja.

Do outro lado da rua, em frente ao clássico edfício, estavam outros quatro. No escuro, foi difícil identificá-los. Mas todos pareciam estar igualmente extravagantes. Estavam fumando maconha. Um deles tinha um pequeno aparelho que tocava intermitentemente um som parecido com reggae.

Um fusca veio, e dele desceram duas outras garotas. Cada uma com uma sacola plástica, uma pra cada lado da rua. Entregaram cerveja ao resto do pessoal, e uma delas, de franja laranja, ficou encarando, de frente pro centro da cidade.

O rio ficava à sua esquerda.

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Jorge Alberto

Ó, Carlota Antônia!

Não me esqueçais, por obséquio! Sabeis que não tive nada mais que uma noite de luxúria com sua irmã, Gisele Marcelina!

Desculpai-me, ó doce e bela Carlota Antônia! Vós sabeis que sem ti, não vivo, não respiro, sou flor sem brotar. Sou folha sem pé, sou espinho a furar!

Acalenta-me, ó maravilhosa, dulcíssima e cativante Carlota Antônia! Recebe-me em teu seio! Recebe-me em teu colo! Recebe-me inteiro!

Graciosa Carlota Antônia, que será de mim sem teus carinhos, sem tua seiva a escorrer-me pela boca!?

Que será de mim sem tua vida a fazer a minha viva, minha vida!?

Carlota Antônia, comecemos por vosso nome! Ó, tal nome, que quando pronunciado deleita-me, deita-me em um manancial de grama verde e rubras flores!

E vossos olhos, cara mia, que quando fitam os meus, transportam-me para um mundo maravilhoso, dos sonhos, onde eu, viril e atlético, amo-te por toda a eternidade?

E ó, Carlota, perdoai-me a falta de sutilezas, mas percebo que gostas! Que aprecias!

Por pura generosidade que sei ser de ti, perdoai-me, aceitai-me novamente em teus braços, dentro de ti!

Mas se não te apetecem meus galanteios, se não te instigam minhas palavras sussurradas - assim - aos teus ouvidos... Dize-me agora, Carlota Antônia! Dize-me, que serei fiel ao meu amor, e defenestrar-me-ei agora!

Dize-me, Carlota Antônia!

Dize-me!

(tua deixa, vai!)

segunda-feira, janeiro 14, 2008

O dia branco.

Algo no ar, você tem certeza, o frio não está apenas frio; você sente seus pulmões molharem quando respira. O nariz se preenche com aquela sensação... Já "respirou" água gelada. Sabe como é. E é mais ou menos isso.

Você se esforçou. Esteve correndo por muitas horas. Agora o frio machuca. O ar que você respira machuca. Sabe que tem que correr mais. Mas machuca tanto... A angústia resseca todo o seu corpo por fora. Mas o ar, o ar úmido que você respira, machuca.

Falta pouco e você sabe disso. Sente que já esteve ali, mesmo sendo tudo branco, é um branco familiar. Pense pelo lado bom: imagine se fosse à noite? Pelo menos de dia você pode se guiar, saber pra onde está indo... Mais ou menos.

Você escuta os gritos, os chamados. Mas não consegue gritar. Não tem fôlego, e não consegue tomar; quando tenta, o ar machuca. Não chega nem a entrar completamente, e já vai molhando o pulmão. O interior de seu nariz congelado.

E então você para, descansa e vira de costas. Você a encara. E aí?


O que você faz?

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Quero viajar este ano.

...Aquela ponte linda, de metal e concreto, meio antiga, e todo mundo batendo foto. Uma delícia, pô, a sensação: o vento, congelando até os ossos, e a gente lá, bem alto, bem alto! Foi ótimo! Todo mundo encasacado, olhando pro horizonte que dava pra ver lá de cima, e abaixo, o rio, e a gente sabia: quem cair, tá morto. O rio tava tão frio que juntava neve nas margens, pô.

Depois que todo mundo tirou as fotos, a gente decidiu continuar. Atravessamos o resto da ponte, e todo mundo parou num café que tinha lá. Bem ponto turístico, logo no finalzinho da ponte, cheio de souvenir, e, claro, todo mundo comprando. Tinha uns mapas lá, réplicas do mapa utilizado pelos primeiros moradores da cidade. Eu comprei logo dois, tava barato. Depois sentei sozinho - meus amigos estavam ocupados comprando presentes - e pedi uma cerveja preta.

Sentado ali, aproveitando a espuma cremosa, sentindo o vento forte e os raios do sol iluminando tudo, eu comecei a pensar. Decidi que era ali que eu iria morar, algum dia, e quem sabe, terminar os dias seguintes vivendo numa comunidade daquela. Seria um dia e tanto.

O pessoal terminou de fazer as compras e decidiu beber. Sentaram-se todos e começaram a rir, e contar piadas, e mostrar os presentes que tinham comprado pras famílias, amigos, e tal. Eu me levantei e voltei caminhando até a ponte. Quando cheguei no meio dela, algumas pessoas da excursão estavam por lá, fotografando, e eu percebi um pequeno grupo que eu não lembrava de ter visto, admirando o horizonte, como eu havia feito há alguns minutos. De repente, um papel escapa da mão duma garota, e sai voando. Eu disse, o vento tava forte.

A garota era linda, dum jeito especial. Não tinha nada demais, não era uma deusa. Mas era linda. Adorei os cabelos. E o papel? Voava, e voava, em minha direção, descrevendo uma espiral forçada pelo vento. Caralho, que cena: a garota começava a correr, tentando pegar o desgraçado do papel, enquanto ele rodopiava como que dançando, no ar, mais rápido que ela, mas nem muito alto para que ela não alcançasse, nem baixo o suficiente pra que caísse e parasse no chão. Em minha direção.

Quando o papel chegou perto de mim, tentei pegar. Com um pulo, estendi a mão e cheguei a sentir a folha em meus dedos. Também deu pra ver que era uma daquelas réplicas de mapa, que eu vira na loja. Pensando bem, lembrei que o grupo tinha acabado de sair da lojinha do café no momento em que pedi a cerveja. Sim, mas... A droga do papel escapou, de mim e da ponte, e foi descendo, ainda em espiral, fazendo menção de subir de volta, mas depois voltando a cair.

Até que caiu. Caiu no rio, e foi levado pela suave correnteza. E eu fiquei lá, como um babaca, debruçado sobre o corrimão pintado de laranja, vendo o papel boiar no rio. Droga, o papel dela. E aí percebi que ela estava do meu lado, olhando com um sorriso meio simples, frustrado, mas sem aparentar estar mesmo triste. Sorriu pra mim e "brigada por tentar", Com os olhos fechados, a cabeça meio pro lado, meiga.

Lembrei então que havia comprado logo dois, tava barato.

quarta-feira, janeiro 02, 2008

O Roubo da "Virtude"

Seis da noite. Tife simplesmente não aguentava mais aquilo. Parara de controlar os bocejos havia vinte minutos. Seus irmãos ficavam falando sobre a garota de cabelos curtos, e ele tentava fingir interesse, mas há vinte minutos não conseguia mais. Sequer olhou pra ela. Nem quando ouviu, sem querer, o pai da moça comentar com seu pai: "por ela ser a mais nova, creio que vosso filho Tife talvez venha a ser o felizardo".

O interesse de Tife estava no pai da garota. Não, Tife não o achou bonito. Não tinha nenhum problema em apaixonar-se por um homem, apesar de nunca ter acontecido. Tife estava interessado em seu dinheiro, e nas jóias que sabia-se por toda a vila que ele escondia. É, exatamente. Tife estava com sono por que era da noite. Não um noctívago, um boêmio, e sim um ladrão. Tife gostava de andar pela noite, invadindo casas e descobrindo tesouros.

Às seis e meia ele se levantou, pediu desculpas e foi ao quarto. Dormiu por quase seis horas, quando o arcaico despertador feito de água e sinos o acordou. Rapidemente se pôs de pé, interrompeu o barulho do despertador e se dirigiu à cozinha. A empregada, Maria, ainda estava limpando os restos do jantar, quando Tife apareceu à porta.

- Tudo limpo, Maria?
- Ai, patrão! Não faça isso de novo! Não, não está limpo! Seu pai e seus irmãos, strega, um bando de porcos! - Maria tinha essa mania de falar "strega".
- Não, querida Maria. Quero saber se todos se recolheram...
- Ai, patrão, não me confunde! Sim, sim, todos deitaram há cerca de 40 minutos!
- Vou indo, querida. Segure a pedra pra mim, sim?

Tife pagava cerca de dez por cento de tudo que arrendava em suas escapulidas noturnas. Em troca, Maria ficava quieta e lhe dava ajuda em tudo que ele necessitava, como da vez que ele precisou de banha de porco para escorregar por um tubo de latrina, ou quando ele precisou de uma lixa de unha para serrar barras de ferro de um porão.

Tife pagaria mesmo se Maria não lhe ajudasse. Sabe, Maria era uma alma boa. Simples, usava boa parte do seu dinheiro para pagar as dívidas do seu filho mais velho. Ele não era muito responsável, mas quem se importa? Maria não irá mais aparecer nessa história, muito provavelmente. Talvez seja um engano. Talvez ela apareça.

Enquanto Maria segurava a pedra para que descesse às catacumbas da família, Tife pensava "hoje será apenas reconhecimento, saber onde ficam os bens do velho, e como farei pra capturá-los". Seis noites por semana, três roubos. Era a rotina de Tife. Ele geralmente voltava antes das cinco da manhã, o que lhe rendia mais três horas de sono, totalizando nove por dia. Era um rapaz saudável, praticamente um atleta.

Ao chegar nas catacumbas, dirigiu-se ao seu caixão. Reservado para o dia de sua morte, ninguém imaginaria que lá ele guardava os equipamentos, as ferramentas necessárias para o exercício de sua profissão. Parou e pensou um pouco: a casa do seu anfitrião ficava fora dos muros da cidade. Era uma semi-fazenda. Ele tinha outras fazendas no decorrer da estrada, perto da charneca. Mas nessa ele cultivava alguns poucos vegetais, e tinha uma criação de quatro ou cinco ovelhas. Tife sabia também que a casa era toda de madeira, com fechaduras de ferro fundido. Tife sabia exatamente o que usar.

Após pegar as ferramentas necessárias, Tife encaminhou-se pro fundo das catacumbas. Lá havia uma grade, fechada por um enorme cadeado, para o qual apenas ele tinha a chave. Não que fosse necessária: comprara, havia três anos, uma chave-mestra de um caixeiro-viajante, e desde então, pouquíssimas fechaduras escapavam de sua girada. Abriu a grade, fechou-a e sem a juda de tochas, entrou no túnel escuro. Tife enxergava bem no escuro.

Continuou por alguns metros até sentir que pisava em água e escutar os guinchos dos pequenos ratos que se assustavam com seu avanço. Tife adorava a sensação. Mais à frente, escutou zumbidos. As baratas, formigas e besouros que habitavam as galerias de sua rua. As antenas geladas, as patinhas finas tocando seu pescoço, nada disso o incomodava. Apenas agitava suas mãos para espantá-los, e seguia em frente. E seguiu. Seguiu até encontrar o cano final, o enorme tubo que dava no córrego fora dos muros. Estava a poucas dezenas de metros de seu destino, mas de súbito...

Tife escutou cachorros, homens gritando, e viu ao longe, perto do muro, o escuro que recuava de seus domínios no decorrer do muro, assustado pela luz do fogo das tochas.

Continua...