quinta-feira, dezembro 27, 2007

A Verdadeira História X + Crise de Identidade III (Acrono) - (Final pt.2 [última])


Era uma noite q u e n t e, abafada. Estava deitado, apenas de samba-canção, observando o teto; o ventilador de teto. A luz que vinha pela janela, meio azulada, era suficiente apenas para ver um pedaço das hélices, girando, girando. O ar que chegava até mim lembrava qualquer coisa como um bafo, daqueles que sentimos na imaginação quando alguém nos fala sobre o Pantanal ou um dia quente em Manaus. Mesmo quando nunca estivemos lá.

Pela janela do quarto, via a silhueta da jaqueira. O contorno e, claro, um ou outro espaço vazio por onde a luz da lua, cheia especialmente para a ocasião, passava e chegava a mim. As folhas na copa da árvore sequer oscilavam, o que indicava a ausência completa de vento. Me levantei, fui até a cozinha beber um copo d'água gelada; nunca mais a vi de outra maneira, só como o lugar onde levei o tiro. Não, não ficava achando que fosse levar outro, mas era lá. Era uma espécie de santuário para o dia em que tudo mudou.

Mas houvera outro dia, outro momento em que tudo mudou. E fora à noite passada. Recebi um presente, um meio de manter meu mundo quando e onde eu quisesse. Bastava escrever, contar a minha vida, a minha história - e, por que não, histórias que eu descobria - pra que o "distúrbio" aparecesse. Eu controlava agora. Eu era o diretor do meu próprio filme. Minha própria peça. Sim, em outro dia, tudo mudou novamente. Essa cozinha era um ambiente, um cenário do passado. Um palco do passado, que dera lugar à seqüência.

No balcão, um jornal. Eu não ligara a luz, mas lembrava da matéria de capa por tê-la lido pela manhã: Casal encontrado morto num beco. A moça, de cabelos laranjas, morria abraçada ao suposto namorado, um jovem que morrera sorrindo. Era eu. Não era eu lá, deitado, morto e sorrindo. Era eu que estava no comando, agora. Ele saía pra dar lugar a mim. O protagonista agora seria Dimitri Miroma, e eu queria aproveitar isso.

Abri a geladeira para pegar um brigadeiro, e, com ele em mãos, dirigi-me à varanda. Nada de vento, a noite assentava como uma massa abafada. Depois de comer, peguei a Gazeta, que estava no banco, e comecei a escrever a hilária história de um profeta. Como esperado, os clarões brilhavam com mais força, me deixando tonto, e os raios passavam diante de meus olhos. A luz azul da lua tornava-se multicor, com várias tonalidades de roxo, azul, vermelho, verde... Minha samba-canção era agora uma calça de palhaço, e as pétalas de diversas espécies de flores começavam a cair de um não-sei-onde infinito.

Mesmo ficando entusiasmado pela maneira teatral como meu mundo reapresentava-se a mim, como sempre fiquei e ficaria pro restos de meus dias, continuei a escrever. Ao acabar, levantei-me, sem notar o sorriso, e fui direto pra cama. Estava um friozinho gostoso no meu mundo.

Diferente desse de vocês.

terça-feira, dezembro 25, 2007

A Verdadeira História X + Crise de Identidade III (Acrono) - (Final pt.1)




Ele olhou o relógio, pela milésima vez hoje. Já estávamos no bar há várias horas, e meu estômago sangrava de tanto vinho. O dele parecia arder também. Mas continuávamos bebendo e fumando como dois moribundos com seus últimos desejos. O dono do bar vinha checar a cada 20 minutos, com uma cara de preocupado. Só que não ficávamos bêbados. Não ficamos, não naquele dia. Nem naquela noite.

Ele me contou a história da menina de cabelos laranjas. A que morreu várias vezes, e, de acordo com ele, ainda morria. E eu decidi que era uma ótima história a ser contada. Mas pra quem eu contaria? Eu não tenho amigos. Apenas ele. Nem os garotos da academia, que moram lá no prédio. Aqueles que lincharam o pobre bandido que tentou me matar. Nem eles eu chamo de amigos.

Mas ele me falou essa história de um jeito estranho. Ele parecia estar querendo me dizer algo, mas ficava enrolando. Na realidade, todas as vezes que nos encontramos, ele falava comigo de um jeito estranho. Quase não me olhava nos olhos. Aliás, ele nunca me olhou nos olhos. E eu percebi, então: sequer sabia seu nome. Pra ser sincero, de todas as vezes, eu só lembro de já estarmos juntos. Nunca o modo como nos encontramos. Se ele telefonou, se eu o chamei. Nem sei se foi por acaso.

Ele então pediu a conta, e mais duas carteiras de cigarro. Nos levantamos, e nenhum dos dois disse nada. Ele foi sozinho até o balcão, pagou a conta e riu um pouco com o dono do bar. Eles pareciam se conhecer. Quando voltou, acendendo um cigarro, me entregou uma das carteiras de cigarro. "Vamos andando?", e eu respondi que sim. E fomos andando. Em nenhum momento, me olhou nos olhos. Nem eu.

Logo chegamos à orla. Caminhamos um pouco, ainda era cedo. Casais de namorados trocavam carícias nos banquinhos escuros. Rodamos um pouco e encontramos um desses banquinhos, no qual sentamos. Ele curvou-se pra frente, e começou a tossir. Apesar do escuro, eu percebi o sangue que saía a cada tosse. Senti o gosto, quando eu mesmo tossi um pouco. Ambos tínhamos úlcera, já sabia disso. Depois, ele acendeu outro cigarro. Tirou um pequeno livro da mochila que carregava, depositou-o no colo, e ficou em silêncio por alguns momentos, admirando o objeto.

Depois de uns minutos, acendi um cigarro também, e peguei o livro de seu colo. Seus olhos seguiram o objeto como se estivessem travados nele. Quando abri a capa, vi que tratava-se de um diário. A primeira página era toda amarelada, meio velha, e uma frase aparecia escrita de maneia estranha, bem no centro. Era "A Gazeta da Melancolia". E era uma idéia minha.

"Fique a vontade. Preencha-a com tudo que te vier à mente. Tudo que você achar que vale à pena ser dito. Se as pessoas querem te conhecer, é a partir daí que conseguirão". Eu estranhei, mas assenti com a cabeça. "E você? Como vai fazer pra ser compreendido?", perguntei. Ele simplesmente virou duas páginas à frente, e apontou pra outro texto. Era uma citação:
"E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós." ~ Gibran Khalil Gibran - O Louco.
Fiquei estarrecido. Aquilo já existia em minha mente. Eu nunca compartilhara com ninguém. Quando finalmente voltei a mim, ele havia se levantado, e parado numa barraquinha de doces. Comprou dois brigadeiros. Continuou andando, e mais à frente, encontrou a garota de cabelos laranjas. Entregou um dos brigadeiros a ela, e deu um beijo em sua bochecha. Os olhos dela brilhavam de maneira fenomenal, e era lindo de ver. Então ele voltou, me entregou o outro brigadeiro, e apontou para o lado oposto. Ela estava lá. Não a menina de cabelos laranjas. A outra... A que me deixou.

À noite, naquela orla, o calçadão calmo e frio, ela estava em pé. O vento balançava pouco seus cabelos curtos. Baixinha, com o rostinho angelical. Não parava de sorrir, me olhando. Mas era um sorriso triste, nostálgico. Daqueles com as sobrancelhas levemente erguidas... Eu me levantei e entreguei-lhe o doce. Ela me deu um beijo na bochecha e foi embora, sem dizer nada. Quando olhei pra trás, escutei a garota de cabelos laranjas chamando "Lipe...vamos?". E ele foi.

Tossi novamente, e desta vez, ainda mais sangue saiu de minha garganta. Fiquei um momento em pé, mas depois sentei no mesmo banquinho. O vento estava tão forte que a copa da árvore balançava, tirando a sombra, e deixando a luz da lua clarear o lugar. Peguei a caneta, amarrada ao diário por um laço vermelho, e comecei a escrever.

De repente, os clarões. Havia meses - anos, não sei mais de nada - que não os via. Os raios, as flores, as nuvens roxas, os fractais. A música, o perfume. Tudo apareceu de repente, como em desenho animado.

A garota de cabelos laranjas virou à esquina, na única rua escura do meu "mundo". A única rua que não era repleta de cores, de vibrações, de flores. Meu amigo parou, olhando para a rua, e depois voltou-se em minha direção. Deu um sorriso leve, virou novamente e entrou na rua também.

Eu não sabia o que fazer com o diário. Com a Gazeta da Melancolia. Mas o que quer que eu fizesse, me ajudaria a manter meu mundo. A me manter em meu mundo.

domingo, dezembro 16, 2007

A Verdadeira História IX + Crise de Identidade II (Acrono)


Outro dia, caminhando com um amigo, contei pra ele a fábula do Lobo e do Coelho. A Buon Anima. Ele ficou confuso, não entendeu o porquê de ser uma fábula. Não tinha moral.

- O máximo que pode ser considerado é que o homem é o mais feroz dos predadores. Mas isso é babaca.

E ele está certo. A moral não está aí. Isso é mesmo babaca. A moral, na realidade, está no coelho. Ora! O coelho ainda não tinha saído completamente da toca quando percebeu o lobo. Por que diabos não voltou pra dentro? Tinha que continuar? Sair de vez, e começar a correr, run for its life?

- A questão é que ele poderia ter voltado. Poderia ter parado, voltado, e pensado em outra coisa. Não precisamos continuar o que começamos! Qual o problema de desistir, de largar as coisas pela metade? Começar algo com entusiasmo, mas depois, simplesmente, perder o fôlego?

- Pior que perder o fôlego quando se foge de um lobo, né? Perder o fôlego antes de continuar e chegar a algo difícil de sair. Um caminho sem-volta.

E era exatamente isso. E foi isso. Exatamente então, meu amigo parou, olhou o relógio, olhou para o céu, pras nuvens, e disse "vamos sentar aqui. Tomar umas cervejas". Engraçado; quando sentamos, percebi que era o bar onde levei os socos. Onde enterrei um copo de vidro num ombro de um bandido. Onde conheci o seu amigo, o cara que iria atirar em mim na minha própria casa. Que iria afastá-la de mim. Ela.

Enfim. Ele pediu uma cerveja e dois copos, mas eu interferi. Quero um vinho, disse. O homem ofereceu dois vinhos vagabundos, e um até melhorzinho, mas... Bem. Caça com gato, não? Meu amigo insistiu na cerveja, sua úlcera não lhe permitia excessos. Fermento demais. Acontece que eu também tinha úlcera.

Enquanto o vinho preenchia o meu copo, e a cerveja dele chegava, a garrafa cinza de tão gelada e eu quase me arrependendo de pedir o vinho, ele começou a falar:

- Então. Eu conheci essa guria. Ela tem uns cabelos lindos. Laranjas. E um ar meio triste...

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Buon Anima

O lobo, despreocupado, caminhava em direção à toca do coelho. Talvez ele saísse, por causa do frio. Talvez o lobo tivesse que fazer vigília... Mas não dormiria com fome. Ele caminhava, sentindo a rajada de vento. A neve já estava consolidada na colina, mas não era diferente dos outros dias. O vento era muito incômodo. Atrapalhava até o pensamento. Mas lobo pensa?

De súbito, um focinho aparece no buraco. O lobo estava na área mais alta, e o coelho só poderia vê-lo quando estivesse totalmente fora da toca. Totalmente exposto. Vulnerável. O lobo lambia os beiços. Sabia que uma bela refeição estava pra chegar, e se tivesse sorte, o resto da família sairia pra ajudar o chefe-coelho. Mas os coelhos têm esse sentimento de proteção? Têm.

Só que coelhos têm ótimos reflexos, e são bastante rápidos. Quando sentiu o bafo quente do lobo, o papai-coelho saiu em disparada. O lobo, com fome, não ficou parado: começou a correr. E foi uma disputa voraz. O coelho fintava, o lobo caía, mas logo levantava com mais raiva. Só que não durou muito... O lobo logo conseguiu alcançar a presa, e, ironicamente, pelas orelhas, o abocanhou. O sangue jorrava.

Então um barulho. O lobo pensou que era um trovão, a princípio. O coelho, um sinal dos céus. E coelho tem céu? Tem. Mas não, era um homem, um caçador. Com seu rifle, atirou nas costas do lobo. Amarrou a carcaça pelas patas, e ao ver o coelho deitado, agonizante, não teve dúvidas em penetrá-lo com uma faca. O pobrezinho não merecia aquele sofrimento.

(...)

O lobo, despreocupado, caminhava em direção à toca do coelho. Não imaginava que existia um outro predador, um predador mais feroz que ele. Um caçador espreitava, deitado na neve, coberto com um casaco branco, com um rifle.