quinta-feira, dezembro 27, 2007

A Verdadeira História X + Crise de Identidade III (Acrono) - (Final pt.2 [última])


Era uma noite q u e n t e, abafada. Estava deitado, apenas de samba-canção, observando o teto; o ventilador de teto. A luz que vinha pela janela, meio azulada, era suficiente apenas para ver um pedaço das hélices, girando, girando. O ar que chegava até mim lembrava qualquer coisa como um bafo, daqueles que sentimos na imaginação quando alguém nos fala sobre o Pantanal ou um dia quente em Manaus. Mesmo quando nunca estivemos lá.

Pela janela do quarto, via a silhueta da jaqueira. O contorno e, claro, um ou outro espaço vazio por onde a luz da lua, cheia especialmente para a ocasião, passava e chegava a mim. As folhas na copa da árvore sequer oscilavam, o que indicava a ausência completa de vento. Me levantei, fui até a cozinha beber um copo d'água gelada; nunca mais a vi de outra maneira, só como o lugar onde levei o tiro. Não, não ficava achando que fosse levar outro, mas era lá. Era uma espécie de santuário para o dia em que tudo mudou.

Mas houvera outro dia, outro momento em que tudo mudou. E fora à noite passada. Recebi um presente, um meio de manter meu mundo quando e onde eu quisesse. Bastava escrever, contar a minha vida, a minha história - e, por que não, histórias que eu descobria - pra que o "distúrbio" aparecesse. Eu controlava agora. Eu era o diretor do meu próprio filme. Minha própria peça. Sim, em outro dia, tudo mudou novamente. Essa cozinha era um ambiente, um cenário do passado. Um palco do passado, que dera lugar à seqüência.

No balcão, um jornal. Eu não ligara a luz, mas lembrava da matéria de capa por tê-la lido pela manhã: Casal encontrado morto num beco. A moça, de cabelos laranjas, morria abraçada ao suposto namorado, um jovem que morrera sorrindo. Era eu. Não era eu lá, deitado, morto e sorrindo. Era eu que estava no comando, agora. Ele saía pra dar lugar a mim. O protagonista agora seria Dimitri Miroma, e eu queria aproveitar isso.

Abri a geladeira para pegar um brigadeiro, e, com ele em mãos, dirigi-me à varanda. Nada de vento, a noite assentava como uma massa abafada. Depois de comer, peguei a Gazeta, que estava no banco, e comecei a escrever a hilária história de um profeta. Como esperado, os clarões brilhavam com mais força, me deixando tonto, e os raios passavam diante de meus olhos. A luz azul da lua tornava-se multicor, com várias tonalidades de roxo, azul, vermelho, verde... Minha samba-canção era agora uma calça de palhaço, e as pétalas de diversas espécies de flores começavam a cair de um não-sei-onde infinito.

Mesmo ficando entusiasmado pela maneira teatral como meu mundo reapresentava-se a mim, como sempre fiquei e ficaria pro restos de meus dias, continuei a escrever. Ao acabar, levantei-me, sem notar o sorriso, e fui direto pra cama. Estava um friozinho gostoso no meu mundo.

Diferente desse de vocês.

terça-feira, dezembro 25, 2007

A Verdadeira História X + Crise de Identidade III (Acrono) - (Final pt.1)




Ele olhou o relógio, pela milésima vez hoje. Já estávamos no bar há várias horas, e meu estômago sangrava de tanto vinho. O dele parecia arder também. Mas continuávamos bebendo e fumando como dois moribundos com seus últimos desejos. O dono do bar vinha checar a cada 20 minutos, com uma cara de preocupado. Só que não ficávamos bêbados. Não ficamos, não naquele dia. Nem naquela noite.

Ele me contou a história da menina de cabelos laranjas. A que morreu várias vezes, e, de acordo com ele, ainda morria. E eu decidi que era uma ótima história a ser contada. Mas pra quem eu contaria? Eu não tenho amigos. Apenas ele. Nem os garotos da academia, que moram lá no prédio. Aqueles que lincharam o pobre bandido que tentou me matar. Nem eles eu chamo de amigos.

Mas ele me falou essa história de um jeito estranho. Ele parecia estar querendo me dizer algo, mas ficava enrolando. Na realidade, todas as vezes que nos encontramos, ele falava comigo de um jeito estranho. Quase não me olhava nos olhos. Aliás, ele nunca me olhou nos olhos. E eu percebi, então: sequer sabia seu nome. Pra ser sincero, de todas as vezes, eu só lembro de já estarmos juntos. Nunca o modo como nos encontramos. Se ele telefonou, se eu o chamei. Nem sei se foi por acaso.

Ele então pediu a conta, e mais duas carteiras de cigarro. Nos levantamos, e nenhum dos dois disse nada. Ele foi sozinho até o balcão, pagou a conta e riu um pouco com o dono do bar. Eles pareciam se conhecer. Quando voltou, acendendo um cigarro, me entregou uma das carteiras de cigarro. "Vamos andando?", e eu respondi que sim. E fomos andando. Em nenhum momento, me olhou nos olhos. Nem eu.

Logo chegamos à orla. Caminhamos um pouco, ainda era cedo. Casais de namorados trocavam carícias nos banquinhos escuros. Rodamos um pouco e encontramos um desses banquinhos, no qual sentamos. Ele curvou-se pra frente, e começou a tossir. Apesar do escuro, eu percebi o sangue que saía a cada tosse. Senti o gosto, quando eu mesmo tossi um pouco. Ambos tínhamos úlcera, já sabia disso. Depois, ele acendeu outro cigarro. Tirou um pequeno livro da mochila que carregava, depositou-o no colo, e ficou em silêncio por alguns momentos, admirando o objeto.

Depois de uns minutos, acendi um cigarro também, e peguei o livro de seu colo. Seus olhos seguiram o objeto como se estivessem travados nele. Quando abri a capa, vi que tratava-se de um diário. A primeira página era toda amarelada, meio velha, e uma frase aparecia escrita de maneia estranha, bem no centro. Era "A Gazeta da Melancolia". E era uma idéia minha.

"Fique a vontade. Preencha-a com tudo que te vier à mente. Tudo que você achar que vale à pena ser dito. Se as pessoas querem te conhecer, é a partir daí que conseguirão". Eu estranhei, mas assenti com a cabeça. "E você? Como vai fazer pra ser compreendido?", perguntei. Ele simplesmente virou duas páginas à frente, e apontou pra outro texto. Era uma citação:
"E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura: a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós." ~ Gibran Khalil Gibran - O Louco.
Fiquei estarrecido. Aquilo já existia em minha mente. Eu nunca compartilhara com ninguém. Quando finalmente voltei a mim, ele havia se levantado, e parado numa barraquinha de doces. Comprou dois brigadeiros. Continuou andando, e mais à frente, encontrou a garota de cabelos laranjas. Entregou um dos brigadeiros a ela, e deu um beijo em sua bochecha. Os olhos dela brilhavam de maneira fenomenal, e era lindo de ver. Então ele voltou, me entregou o outro brigadeiro, e apontou para o lado oposto. Ela estava lá. Não a menina de cabelos laranjas. A outra... A que me deixou.

À noite, naquela orla, o calçadão calmo e frio, ela estava em pé. O vento balançava pouco seus cabelos curtos. Baixinha, com o rostinho angelical. Não parava de sorrir, me olhando. Mas era um sorriso triste, nostálgico. Daqueles com as sobrancelhas levemente erguidas... Eu me levantei e entreguei-lhe o doce. Ela me deu um beijo na bochecha e foi embora, sem dizer nada. Quando olhei pra trás, escutei a garota de cabelos laranjas chamando "Lipe...vamos?". E ele foi.

Tossi novamente, e desta vez, ainda mais sangue saiu de minha garganta. Fiquei um momento em pé, mas depois sentei no mesmo banquinho. O vento estava tão forte que a copa da árvore balançava, tirando a sombra, e deixando a luz da lua clarear o lugar. Peguei a caneta, amarrada ao diário por um laço vermelho, e comecei a escrever.

De repente, os clarões. Havia meses - anos, não sei mais de nada - que não os via. Os raios, as flores, as nuvens roxas, os fractais. A música, o perfume. Tudo apareceu de repente, como em desenho animado.

A garota de cabelos laranjas virou à esquina, na única rua escura do meu "mundo". A única rua que não era repleta de cores, de vibrações, de flores. Meu amigo parou, olhando para a rua, e depois voltou-se em minha direção. Deu um sorriso leve, virou novamente e entrou na rua também.

Eu não sabia o que fazer com o diário. Com a Gazeta da Melancolia. Mas o que quer que eu fizesse, me ajudaria a manter meu mundo. A me manter em meu mundo.

domingo, dezembro 16, 2007

A Verdadeira História IX + Crise de Identidade II (Acrono)


Outro dia, caminhando com um amigo, contei pra ele a fábula do Lobo e do Coelho. A Buon Anima. Ele ficou confuso, não entendeu o porquê de ser uma fábula. Não tinha moral.

- O máximo que pode ser considerado é que o homem é o mais feroz dos predadores. Mas isso é babaca.

E ele está certo. A moral não está aí. Isso é mesmo babaca. A moral, na realidade, está no coelho. Ora! O coelho ainda não tinha saído completamente da toca quando percebeu o lobo. Por que diabos não voltou pra dentro? Tinha que continuar? Sair de vez, e começar a correr, run for its life?

- A questão é que ele poderia ter voltado. Poderia ter parado, voltado, e pensado em outra coisa. Não precisamos continuar o que começamos! Qual o problema de desistir, de largar as coisas pela metade? Começar algo com entusiasmo, mas depois, simplesmente, perder o fôlego?

- Pior que perder o fôlego quando se foge de um lobo, né? Perder o fôlego antes de continuar e chegar a algo difícil de sair. Um caminho sem-volta.

E era exatamente isso. E foi isso. Exatamente então, meu amigo parou, olhou o relógio, olhou para o céu, pras nuvens, e disse "vamos sentar aqui. Tomar umas cervejas". Engraçado; quando sentamos, percebi que era o bar onde levei os socos. Onde enterrei um copo de vidro num ombro de um bandido. Onde conheci o seu amigo, o cara que iria atirar em mim na minha própria casa. Que iria afastá-la de mim. Ela.

Enfim. Ele pediu uma cerveja e dois copos, mas eu interferi. Quero um vinho, disse. O homem ofereceu dois vinhos vagabundos, e um até melhorzinho, mas... Bem. Caça com gato, não? Meu amigo insistiu na cerveja, sua úlcera não lhe permitia excessos. Fermento demais. Acontece que eu também tinha úlcera.

Enquanto o vinho preenchia o meu copo, e a cerveja dele chegava, a garrafa cinza de tão gelada e eu quase me arrependendo de pedir o vinho, ele começou a falar:

- Então. Eu conheci essa guria. Ela tem uns cabelos lindos. Laranjas. E um ar meio triste...

segunda-feira, dezembro 03, 2007

Buon Anima

O lobo, despreocupado, caminhava em direção à toca do coelho. Talvez ele saísse, por causa do frio. Talvez o lobo tivesse que fazer vigília... Mas não dormiria com fome. Ele caminhava, sentindo a rajada de vento. A neve já estava consolidada na colina, mas não era diferente dos outros dias. O vento era muito incômodo. Atrapalhava até o pensamento. Mas lobo pensa?

De súbito, um focinho aparece no buraco. O lobo estava na área mais alta, e o coelho só poderia vê-lo quando estivesse totalmente fora da toca. Totalmente exposto. Vulnerável. O lobo lambia os beiços. Sabia que uma bela refeição estava pra chegar, e se tivesse sorte, o resto da família sairia pra ajudar o chefe-coelho. Mas os coelhos têm esse sentimento de proteção? Têm.

Só que coelhos têm ótimos reflexos, e são bastante rápidos. Quando sentiu o bafo quente do lobo, o papai-coelho saiu em disparada. O lobo, com fome, não ficou parado: começou a correr. E foi uma disputa voraz. O coelho fintava, o lobo caía, mas logo levantava com mais raiva. Só que não durou muito... O lobo logo conseguiu alcançar a presa, e, ironicamente, pelas orelhas, o abocanhou. O sangue jorrava.

Então um barulho. O lobo pensou que era um trovão, a princípio. O coelho, um sinal dos céus. E coelho tem céu? Tem. Mas não, era um homem, um caçador. Com seu rifle, atirou nas costas do lobo. Amarrou a carcaça pelas patas, e ao ver o coelho deitado, agonizante, não teve dúvidas em penetrá-lo com uma faca. O pobrezinho não merecia aquele sofrimento.

(...)

O lobo, despreocupado, caminhava em direção à toca do coelho. Não imaginava que existia um outro predador, um predador mais feroz que ele. Um caçador espreitava, deitado na neve, coberto com um casaco branco, com um rifle.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Since when.

Jules Cherét, "avô" do CMYK, lindas tipografias. Lindas iluminações. Principalmente em se tratando de Litografia. Destaque para "Théâtrophone"

segunda-feira, novembro 19, 2007

Roda moinho, roda pião.

Acordar, lavar o rosto. Passar vários minutos olhando, imóvel, o reflexo no espelho. Uma expressão de asco. De repulsa. Lavar o rosto novamente, escovar os dentes e pentear o cabelo. Sair, fumar um cigarro e tomar um café. Eu tava tentando parar, diminuir, maneirar nisso...Isso de tomar tanto café. Queria era largar o café. Mas precisava dele para acordar, sair desse transe, o transe de encarar o espelho, o reflexo no espelho como se fosse partir para uma briga. O café ajudava nisso. O cigarro também.

Então sentar, ligar o computador. Checar e-mails, olhar notícias matinais. Voltar, tomar banho, e pensar:

- As coisas podiam mudar. O mundo podia ser feliz, pessoas iguais, e felizes. Tudo o contrário do que é hoje em dia.


Mas aí sair do banho, e curioso: Olhar pra janela. Perceber, então, que as coisas eram assim! Eram felizes, as pessoas eram iguais. E felizes.

E estava tudo mudado. Parecia que realmente, desta vez, as coisas iriam rodar pelos eixos corretos. Parecia que o mundo ia ser feliz, afinal. Foi quando acordei, e falei comigo mesmo: putz, que sonho. Que sonho bom.

Mas aí fui até o banheiro, e me olhei no espelho. E percebi que não era só sonho, que iria se realizar:

As cerdas da escova estavam caindo em meu cabelo, e não o contrário.

quinta-feira, novembro 15, 2007

Beautiful friend.

...E tudo isso vai continuar assim, vai ser doloroso, depois bom. Depois fica ruim, depois bom. Sabe quando alguma coisa boa acontece, mas você simplesmente não entende o que tem de errado? Você se pega perguntando o porquê de estar tudo bem, e ainda assim sentir falta de algo. Aí não consegue entender o que é que falta, o que é que está errado.

Talvez seja apenas, sei lá, saber o que dizer, na hora certa, aquela hora. Responder da maneira certa, mesmo que não tenha havido pergunta. Pois tem horas que a mais concreta das afirmações requer uma resposta. E geralmente, a resposta é oposta. Você sabe disso, você tem o estalo na hora, no momento de dizer, mas se cala. Se cala perante aquilo que vai decidir seus próximos dias (próximos no sentido de seguintes, e não de "em breve"). E se calar parece uma solução tão agradável nos primeiros momentos. Aqueles que duram menos de um segundo, sabe?

Pois nos próximos momentos (no sentido de "em breve" agora), você pensa:

"É. Não era o silêncio que representava um lugarzinho calmo e quentinho. Era a resposta".

A resposta e toda a conseqüência que ela traria.

quinta-feira, novembro 08, 2007

Literalmente nuvens.

E sou nada mais que um pacote de queijo comprado às pressas, um pacote de queijo. Nada mais que um maço de cigarro amassado, coberto com a água da chuva do dia em que a gente dançou. Na chuva. Nada mais, repito, que um maço de cigarro amassado. O último maço de cigarro daquela madrugada.

Eu sou apenas um pedaço da tua mente, o pedaço mais escanteado, excluído, decididamente segregado: aquele que você não fez questão alguma de apresentar aos pais, mas que precisa que eu apresente aos meus. Aquele que pega na tua mão escondido, apenas segurando no último dos dedos. Mas é um dedo, e da mão!

Eu sou a sensação de satisfeito que tu tens depois de comer um pacote de biscoitos sortidos. Um pacote de Club Social. Aquela sensação de "comido" que tu tens quando deita na grama e fica apenas sentindo o vento, o vento balançar teus cabelos. Eu sou o vento que balança teus cabelos.

Quem sou eu? Assim como a flor que timidamente desabrocha no vasinho da varanda, eu sou aquela que te faz acordar todo dia, e agradecer às nuvens por elas só existirem de verdade.

Eu sou tua.

sábado, novembro 03, 2007

The Bad Trip

_____- Manda ele sair daí, manda ele sair daí, manda ele sair sair, manda ele...daí.

Eu não conseguia me livrar daquela sensação, de saber que as coisas não estão certas, não estão oquei. Engraçado é que eu via tudo certinho, tudo igual, tudo como era antes de... As coisas tavam oquei. Mas não tavam. Era uma distância diferente, as distâncias eram iguais, mas estavam looking different. Sempre ouvira falar, sempre tinha ouvido falar, tinha ouvidos. As coisas tavam bem diferentes.

Começou às 12 da tarde. Não...se eram 12 tava tarde. Não, tava de noite. Metade desta. Simplesmente o barulho que se repetia, o estado, aliás, o estatuto. Não, não. Deixa eu recomeçar. De meia-noite, o barulho começou. E se repetia. Comecei a analisá-lo - não tinha nada melhor pra fazer, tava deitado na minha cama fumando. Comecei a analisá-lo, e percebi várias coisinhas nesse meanwhile:

* O barulho não se repetia exatamente. Aliás, se repetia, mas havia uma distância cada vez menor entre um e outro. Começou barulho, espaço ----------------- barulho. Depois barulho, espaço ---------------- barulho. E por aí foi indo, foi findo. Findou no Barulho. Só este, direto, sem interrupções.

* Ao fundo, tinha um espaço sem barulho. Aliás, ao fundo do barulho, tinha um espaço com uma microfonia. Ou era uma interferência. Sei que era agudo e triste. Imaginei pegar um papel, amassá-lo, e gravar somente 10 milésimos de segundo do barulho do amasso. Era isso, que eu ouvia. Era isso que eu ouvia.

* O barulho era legal de se ouvir, era oquei. As coisas estavam oquei.


De repente, uma serpente, uma serpente que rodeava meu quarto. Não era bem uma serpente, era meio que um lagarto, sem pernas, sem braços, sem olhos nem escamas. Mas não parecia nem de longe uma minhoca, um verme grande. Era até pequeno. Pequena. Mas eu sabia ser uma serpente. Eu não tive medo. Nem ela. Ou ele, nunca soube ao certo, o sexo.

Eu disse, ela não tinha olhos nem escamas, mas não mencionei a boca. A boca era bonita, lembrava a de um homem forte, tinha até uma cicatriz no lábio superior. E aí ela veio em minha direção: com a cauda, enrolou-se em meu pescoço. Com a boca, começou a me chupar, me fez entrar em êxtase assim que encostou os lábios em meu pau. Doía, mas era bom. Doía por que apesar de ter a boca de um homem, tinha as presas de uma cobra. Mas não chegou a ferir. Só doeu. De repente, fui chegando perto de um orgasmo, perto de gozar, e ao mesmo tempo, ela apertava mais o meu pescoço. Fui vendo tudo escuro, quase sem discernir os objetos. E aí toquei em seus cabelos. Ela não tinha cabelos quando começou, mas depois percebi: Negros como a noite, a metade da noite, e compridos. E a boca não era mais a de um homem, mas de uma mulher, magnífica.

Quando acordei, mais ou menos de dia, de meio dia, ao meio-dia, não existia mais nada ali. Só o cheiro do sexo. Minhas roupas estavam devidamente colocadas, a calça fechada como se nunca tivesse sido aberta. Não cheguei a gozar, mas foi um dos momentos mais gostosos de minha vida.

Só então acordei de verdade. Sangue no quarto, dinheiro espalhado, a maior parte rasgada no meio. De onde vinha o sangue? Após uma minuciosa análise, percebi que saía do buraco em meu peito.

quarta-feira, outubro 10, 2007

Um deus em cada gota de chuva.

O ser humano é egocêntrico por natureza. Julga-se capaz de tudo. Julga conhecer todos os confins do planeta. Mas há um lugar, uma ilha. Uma ilha que apenas alguns homens, crianças e, principalmente, mulheres conhecem. E são os homens, crianças e mulheres que moram lá. Nessa ilha, na Ilha, pouco se sabe do resto do mundo. Pois seus habitantes decidiram que não precisam sair dela. Pra nada.

A Ilha não é deserta, mas deveria ser, pois lá só chove uma vez a cada 10 anos. Mas é uma chuva especial, pois assim que ela toca o solo, revigora todos os animais e plantas que lá vivem. A vegetação, que já era bastante verde, torna-se ainda mais verde, e os animais que já eram bastante felizes, tornam-se ainda mais felizes. Mais vivos. Incluindo os humanos. Os humanos que lá vivem tornam-se mais felizes quando chove.

Essa gente não sabe, mas existe algo especial nessa chuva. Não sabem por que não têm ciência. Eles decidiram não estudar nada, não tentar descobrir nada sobre a natureza, sobre o que os move. Também decidiram não criar uma linguagem ou uma escrita especial. Comunicam-se com o coração. Com os olhares. Há aqueles que se comunicam melhor, transmitem melhor as mensagens que os outros. Mas isso existe em qualquer lugar do mundo, não só na Ilha. A diferença é que na Ilha, esses não são melhores ou mais importantes que os outros.

Se aqueles que vivem na Ilha estudassem, tentassem descobrir, descobririam facilmente o que torna a Ilha especial: É que existe um deus em cada uma das gotas dessa chuva. Esses deuses só vivem tempo suficiente pra gota ser gerada lá em cima, nas nuvens, e chegar ao chão da Ilha. Mas é o melhor momento para tudo que vive. Inclusive os deuses. E os que vivem na Ilha. Se eles descobrissem que na Ilha, existe um deus em cada gota de chuva, talvez eles decidissem que não seriam mais felizes.

E é por isso que eles decidiram não descobrir. Apenas seguem comunicando-se com os olhares. E respeitando, mesmo sem saber, os deuses que vivem nas gotas da chuva.

sábado, setembro 22, 2007

Crise de Identidade (Acrono)

Em uma de suas andanças, vosso destemido autor conheceu um jovem. Um jovem, que assim como ele, tinha distúrbios. Só que um distúrbio diferente. A ele, não incomodava o mundo real. A ele, não se aparecia um mundo completamente novo. A ele, irritava seu comportamento social. Tudo que fazia para criar laços, dava errado. E ainda dá.

Um dia da história desse jovem, em particular, chamou a atenção deste que vos escreve: O dia em que o jovem, entusiasmado pelas novas companhias que buscava constituir, passou inteiro em uma livraria. Entre grandiosos autores, famosos escritores, um pequeno livro lhe chamou atenção. Um livro de poesias, que reunia vários artistas pouco conhecidos.

Então o jovem abriu o livro. Começou a ler, e fitou, por horas, um versinho criado por uma mulher de quem nunca ouvira falar. O versinho era pequeno. Uma página de 5cmX10cm, mas preenchida por apenas duas linhas:

E o que é a solidão?
A falta do outro, ou o excesso de mim?
- Maria Flora


E ele não melhorou de sua situação, não perdeu o distúrbio ou deixou de relevá-lo; apenas compreendeu e aceitou melhor. Não melhorou por que não importava o motivo: mantinha-se triste. Mas aceitou que tanto por um, quanto pelo outro, seria solitário. Aprenderia então a tomar proveito disso.

E assim, quase como vosso autor, criou uma certa simpatia pelo seu distúrbio.

domingo, setembro 09, 2007

A Ilha

Depois de sair do parque, encaminhou-se pra casa; não ia entrar, nem nada. Só dar uma olhada pra entrada do prédio. Lembrar de quando era pequena, e saía pra jogar futebol com os meninos. A mãe detestava isso, vê-la sair com garotos pra jogar bola, e não com as meninas pra brincar de boneca. Mas o pai adorava. Ele tinha menos preconceitos em relação a isso que a mãe. Ele adorava saber que a filha podia muito bem fazer atividades "masculinas", mas ainda assim conservar a asinha rosa de borboleta da fantasia do colégio. Ela era mesmo feminina, sabia disso.

Pensou em subir, pegar a asinha da borboleta, e levar consigo pra... aonde estava indo? Não saberia dizer nem quando chegasse. E isso não interessava, né? Desistiu de subir. A asinha de borboleta poderia esperar. Seu pai guardaria, com certeza. Desceu a rua com um sorriso estranho no rosto. Estranho pois não tinha motivo, não tinha razão para sorrir. E estranho fisicamente mesmo. Não era um sorriso feliz, era meio torto. Só então percebeu que chorava.

Mas por que choraria? Pelo que poderia chorar, se não tinha motivos pra ficar triste? Simplesmente por não ter motivos para ficar feliz. A dor não residia apenas nos problemas. A falta de problemas também representava a falta de soluções, e o gozo de resolver algo. Como quando resolveu pintar o cabelo de preto, pra esconder o laranja. O laranja natural, quer dizer. Mas não conseguiu. No dia seguinte, o laranja voltou. E aí é que se apresentou a real solução. Percebeu que ficava linda com o cabelo laranja. O laranja natural, quer dizer. Decidiu então fantasiar.


Enquanto descia a rua, com lágrimas nos olhos e um sorriso torto, pensou-se navegando. Mares calmos, num dia claro, e o vento muito, mas muito forte e frio. Seus cabelos voavam de um jeito muito charmoso. Nua, com os mamilos rijos, os mamilos bem no centro daqueles seios pequenos. A proa estava cheia de areia. Sentia frio nos pés, em meio às algas. Os albatrozes deviam ter trazido as algas pra proa, só podia. De que outro modo elas chegariam ali? Só se o navio tivesse submergido em algum momento, antes dela embarcar. E provavelmente foi o que aconteceu. O vento ficava mais frio, e os pingüins apareciam nadando, ao redor do navio. Eles eram rápidos, e o navio, lento. "Indo para o sul, sempre para o sul".

A ilha crescia no horizonte. Aquela ilha era para onde estava indo, com certeza. E agora, isso interessava. Sabia dizer que seu destino era A Ilha. Uma ilha bonita, que por causa do frio, tinha um pico daqueles bonitinhos, coberto de neve, mas a vegetação embaixo era densa. Densa de um jeito não-tem-ninguém-vivendo-aqui. Só a natureza. E enquanto o navio se aproximava, ela, na proa, alternava entre olhar pra ilha e pros pingüins. E chorava. Chorava de felicidade. Era maravilhoso, sentir aquilo. O frio não incomodava. Ou incomodava, mas era isso que era bom, por ser frio. É bom saber que você está sentindo muito frio, num lugar longe de casa, numa atmosfera lânguida. Era quase folclórico.

E enquanto não percebia os recifes de corais se adensando, indicando a proximidade cada vez maior da costa, também não percebeu o ônibus saindo da perpendicular. Morreu enquanto fantasiava com a ilha que seria seu destino.

sexta-feira, agosto 31, 2007

Como foi?

"...foi quando me sentei, no telhado. O telhado lá do prédio é bem legal, à noite. Não à noite assim, nove, dez; não. Tipo, de madrugada. O prédio fica no centro da cidade, e de madrugada não costuma ter muita gente passando por lá. Se tivesse, faria diferença sim, pois não é muito alto - tem apenas sete andares - e o barulho incomodaria. Mas de madrugada, em dia de semana, não. Não incomoda.

Mas bem, como eu dizia, foi naquela madrugada. Eu tinha comprado uma caixa com seis cervejas. Levei lá pro telhado, e ninguém havia mexido no meu 'cantinho', que é onde eu deixo minha cadeira de praia e o isopor, com a tampa cheia de fita crepe. Joguei as cervejas lá dentro, e abri uma. Sentei na cadeira e curti o vento, o silêcio. É bom, é quando a gente involuntariamente passa a pensar. A refletir sobre as coisas. Começa pensando no dia, o que aconteceu, algo que fugiu da rotina e aí tu termina pensando em coisa que não tem nada a ver. E é massa.

É massa como a gente percebe que fez algo errado, ou algo certo, numa situação dessa. Até quando a gente lembra de ter feito uma coisa muito idiota, a gente fica com vergonha de novo, mesmo não tendo ninguém. Mas bem, acabei a primeira cerveja - que já tinha ficado quente, pois demorei a beber pensando -, e já ia soltá-la no chão. Aí vem a parte estranha: de repente, começa a chover, mas parece que tava chovendo há muito tempo, por que quando eu senti o primeiro pingo, a roupa já tava toda molhada. Me levantei pra ir pro abrigo, embaixo da caixa-d'água, mas me detive assim que dei o primeiro passo.

Joguei a garrafa vazia na parede da escada, e foi em câmera lenta. Não sei o que houve, eu não tava bêbada! Ainda tinha acabado de beber a primeira! Mas acompanhei a garrafa voando em direção à parede, e vi alguém saindo pela porta. Não dava pra ver direito por que tava escuro, mas não bateu no vulto. Nem perto. Nem os estilhaços, quando quebrou. O vulto simplesmente continuou a andar, em minha direção. Aí comecei a pedir...

-...desculpa! Eu não tava vendo. Não sei o que me deu, eu... eu só senti vontade de jogar.
- Nah, tudo bem. Não passou nem perto. Eu também não sei o que aconteceu. Só senti vontade de subir.

Ele era forte... Tinha um jeito de quem fazia artes marciais. A silhueta dos braços, descansados, não encostava na cintura, pois era l a r g o. O tipo de homem pelo qual não me interesso, acho que intelectualmente. Também não dava pra ver o rosto direito, mas parecia ser bonito. Era firme, marmóreo. Aparentemente tinha uma barba por fazer, mas não grande, só crescendo. Digo por que deu pra ver como a chuva se concentrava ali, ao redor da boca. Aquela boca, ali sim dava pra ver; ou sentir, não sei! Não sei, não senti tesão de imediato, mas achei bem sexy. O contexto o era.

Ele trazia mais doze cervejas. Aparentemente, teríamos uma festa! Nossa, qüão inusitado! Perguntou se poderia colocar no isopor, e eu disse que sim. Não deixei aparentar medo ou desconfiança, nada assim. Tentei ser a dona do momento. Eu ditava as regras. É sempre assim, quem manda sou eu! Mas...eu não tinha marcado nada, não tínhamos resolvido nada... Ele poderia estar ali esperando alguém! Mas por que usar o meu...

-...isopor? É perfeito. Poderia ter mais uma cadeirinha, mas não tem problema. - Disse isso enquanto sentava no chão, abrindo uma das minhas que estavam mais geladas.
- Ah, faço isso sempre que posso...É uma espécie de...hmmm...
- Retiro? Eu vim aqui em cima com essa intenção. Hoje pela manhã eu subi, e vi o isopor e a cadeirinha... Achei que eram deixados pelos moradores para serem usados pelos próprios. Não imaginei que tinham dona.
- Ah, relaxa. Mas... eu não lembro bem de você... A gente se conhece? Tu mora aqui no...?

Ele então contou que era amigo de Diogo, meu vizinho de andar. Veio de outra cidade pra estudar, e ainda estava procurando um lugar pra morar. Tava até pensando em alugar o apê da frente do meu, que estava desocupado. Ele falava de um jeito bonito. Meio arrastado, meio rouco. Tinha cabelo grande também, só percebi depois, pois tava preso. Mas era até bonito. Ele tinha jeito de surfista...Mas tinha jeito de mafioso também.

Putz, eu e minha mania de rotular. De qualquer forma foi massa, a noite. Conversamos sobre um monte de coisa. Sobre a faculdade que eu estudo, sobre a que ele ia começar, sobre dinheiro, sobre trabalho, sobre bebida, cinema. Ele gosta de fotografia também. Falou que gostaria de repetir aquela baladinha a dois, só que com outras bebidas, talvez. Viciado em cerveja também, mas tava achando a barriga muito grande. Rá, e a minha, panacão?

Bem, depois disso, a gente foi ficando bêbado, e fomos pro meu apê. Agora é tua vez de contar, qual foi a que tu mais gostou?"

E abriu outra cerveja.

quinta-feira, agosto 30, 2007

Sepukku

O Relógio do parque batia 23 horas. Onze da noite. Na vera, era proibido ficar até essa hora. O parque fechava às 21. Nove da noite. Mas el* ficara meio que escondidinh*, no último banco, depois da jaula dos macacos-prego. Engraçado, isso. Um parque, com vários motivos de saúde, pista de cooper, exercícios, etc. Cheio de plantas, crianças correndo (de dia, pelo menos), e cheio de jaulas também, com animais enclausurados.

De repente um apito. Putamerda, os seguranças *. "Se me pegarem aqui, vão telefonar. Vão telefonar, ou no mínimo, com sorte, apenas me mandar sair do parque". É quando começam os calafrios, a sensação. Adrenalina, isso pelo menos el* tinha aprendido. Muita adrenalina. Levanta e corre pra trás da jaula, segundos antes dos seguranças dobrarem a esquina. Tá escuro, não vai dar pra vê-la. Os macacos só precisam ficar quietinhos.

Quando levantou do banco, o vento começou a movimentar-se. Mais, mais forte. Mais adrenalina. Seus cabelos, compridos pra negar a tendência atual, eram de um laranja intenso, e meio que iluminaram todo o caminho entre o banquinho e o corredor. Seus olhos, pretos como piche, criaram um rastro de luz branca (pelo reflexo) que parecia efeito de cinema, em filme de terror. Um não, dois; eram dois rastros, por serem dois olhos.

Os seguranças passaram e viram todos esses indícios, o raio de luz laranja parecendo fogo emitido pelos cabelos, os rastros brancos das bolinhas, reflexos das luzes dos postes nos olhos. Perceberam a mudança no vento, que ficou bem mais forte, e mais frio. Percebram todas as pistas psicodélicas desse movimento. Inclusive, até acreditaram ter visto um vulto entre as folhas de bananeira e o corredor atrás da jaula dos macacos-prego. Mas as atribuíram à maconha que haviam fumado minutos antes.

El* escapava mais uma vez, e isso já estava se tornando um hábito. Talvez o sucesso ao escapar também, mas principalmente a necessidade. Necessidade de fugir. Não iria querer mais estabelecer relacionamentos. Iria fugir pro resto da vida, manter-se ausente. Sua intenção era extinguir de vez as bolinhas que representavam o brilho nos olhos. Talvez até mudar o cabelo. Não merecia.

Iria pra longe, arrumar um emprego medíocre. Medíocre justamente por isso, para se identificar com seu ego. Era assim que se torturava por ter feito qualquer coisa repreensível. Sua consciência a repreendia na intenção de lhe colocar "no seu lugar". "Você não tem capacidade pra isso, com que intuito o fez?" ou "como tem coragem de pensar em fazer isso, se você tem esse retardo mental?"... "Com que direito?".

Mas dessa vez fora longe demais. Aparentemente, sua consciência * havia abandonado, por desistir de sua redenção. Mas continuaria agindo como se ainda a tivesse. Como que na intenção de mostrar pra ela que sabia se punir sozinh*, mas gostava da presença de uma entidade superior. Redenção, era isso que a consciência lhe prometia. Mas algo lhe viria à mente: Acaso os macacos-prego têm redenção, uma vez que não têm consciência? Se não tiverem, aliás. Mas ainda assim são seres vivos. E merecem a redenção. A salvação.

Naquele momento não pensara nisso, apenas em dar-lhes um pouco da sensação de estarem salvos, livres. E com isso, el* se sentiria safo, libertin*. Eis a parte boa de estudar em uma escola comandada por freiras. Lá, se aprende de tudo. Desde fumar até arrombamento. E foi o que fez: com uma mola retirada do isqueiro (não tinha mais cigarro, era desnecessário, então) abriu o enorme cadeado que separava os macaquinhos da liberdade do parque. Abriu a grade e entrou na jaula.

A princípio, os macacos-prego estranharam. Mas logo começaram a se exaltar, e em poucos minutos, todos haviam saído da jaula. Mas a jaula não estava vazia. Nela deitava uma pessoa, de cabelos laranja, com uma faca enfiada na barriga. Seus olhos não exibiam mais as bolinhas brancas de luz, talvez por já ter morrido, talvez por que a jaula era escura. E o sangue escorria em direção aos cabelos. Como era sua intenção, mudar os cabelos e perder o brilho nos olhos. Não merecia.

domingo, agosto 26, 2007

E o que me resta?

Chega do trabalho, toma banho, e olha o que tem pra comer. Nada atrai. Não, pode até ser algo interessante, mas não atrai. Come dois biscoitos, e vai pro computador, mas também não atrai. Vê pessoas com quem gostaria de conversar através da enorme rede, mas também não se sente muito na váibe chat. Enche o saco de tudo e deita pra ver filme.

O filme acaba, desliga o monitor e vai dormir. Só que chegam os pensamentos. Críticas e contestações, reflexões. Será que...? Ou...? Tanto faz. Mas não faz, o pior é isso. Fuma um cigarro. É legal, assim: tudo no escuro, somente o LED do gabinete do computador aceso, e acende um cigarro. Ficam duas luzinhas: uma estática, e uma amarela, se movimentando, seguindo sua mão. A escuridão ajuda no ludismo da cena. Apenas a ponta do cigarro. Esquece até de tragar, as vezes.

Mas traga. E traga forte, até doer a garganta. Doer de um jeito que se sinta vivo; ora, como sentir dor se não se está vivo? Talvez a maior vantagem do cigarro seja essa. Meio masoquista, porém, realidade inegável. O cigarro acaba antes que o sono chegue, maldição. Sem vontade de acender outro, fecha os olhos e espera a escuridão tomar conta também dos pensamentos. Rá, impossível. Os pensamentos voam, num dia claro, que só tem nuvens pra tornar mais caótico. Mas é como se não houvesse nenhuma, pela claridade.

Os pensamentos, nesse exato momento, podem ser comparados ao meio-dia no Centro de uma Metrópole. Se percebe em pé, numa esquina, vendo a rua movimentada com os carros, caminhões de entrega de refrigerantes, ambulantes gritando os vulgos de suas mercadorias. Estudantes saindo das aulas, outros chegando para o turno da tarde. Gritos, buzinas, e afins.

Mas sabe como é um meio-dia no Centro de uma grande Metrópole. Se conseguir se concentrar, evitar dar atenção ao barulho dos gritos e buzinas... Talvez perceba que ainda existem uns poucos pássaros cantando. Nas árvores mais altas, tá certo, longe do caos. Mas ainda existem; e é nessa hora que se dorme.

É nessa hora que pode se dormir.

sábado, agosto 25, 2007

A Verdadeira História VIII


Então. Três meses e meio haviam se passado. Eu já havia voltado a trabalhar, ainda que com dificuldade. Reduzido a uma jornada de cinco horas diárias, por causa do ferimento, o dia não era muito produtivo lá na Soft. E também não tinha sentido, pois Ela não estava mais lá. É, me informaram que quatro dias depois de eu entrar em coma, ela saiu do hospital, se demitiu, e despareceu. Vanished. Simplesmente sumira do mapa. Nem Renat* sabia algo sobre ela.

Também havia muita coisa pra eu me preocupar. Tinha que resolver coisas da indenização. É, o juiz disse que foi culpa do pessoal do Edifício, que não deu segurança aos moradores. Foda isso, né? Não fui nem eu quem lançou o processo. Foi D. Amália. Né foda? Foda. Bem, eu não me importaria em ganhar mais alguma grana. Mas tinha o processo, tinha que testemunhar, e os blablablas de sempre. Eu tinha acabado de levar um tiro, meu "mundo" sumira, tive que gastar muito com o hospital, etc. A coisa não tava legal pro meu lado, não.

Mentira, nada disso me preocupava (tá, talvez a perda do distúrbio), só Seu sumiço. Pra que? Por quê? Por que eu provavelmente viraria um inválido, se não morresse? Bah, não tem pra quê eu pensar isso. Ela não pensaria assim. Foda. Foda mesmo! De qualquer forma, ela se foi, né? E eu estava sem meu mundo. Culpa do meu mundo. Quem me mandou sorrir? Quem mandou aqueles caras perceberem meu sorriso? Quem me mandou enfiar o copo no ombro dele? Devia ter recebido as pancadas na minha, já tava fodido mesmo. Foda-se! Foda...

Eu passei dezoito dias em coma. Dezoito! E ela passou quatro deles lá, no hospital. Mal comeu, enquanto eu comia por tubos. A enfermeira gostosa disse que ela simplesmente acordava, e ficava sentada do meu lado, até dar sono, e dormir por mais umas quatro, cinco horas. Pra acordar e ficar de novo. Comer um sanduiche por dia, com um copo de "mangaranja", que era um suco de manga com laranja (duuh, óbvio) que serviam na lanchonete. E depois, ir embora? Putz! Que não ficasse NENHUM dia! NENHUM! Que não sentasse ao meu lado, que comesse até estourar, que se destruisse em bebidas e sexo e drogas, quanto eu agonizava (ou não, tava em coma)! Mas ficasse comigo pra sempre. Estivesse aqui quando eu acordasse.

Mas ela não estava. Os girassóis azuis não estavam. O céu, rosa, azul, laranja e branco não estava. As zebras, os palhaços e malabaristas não estavam. As roupas, uma mistura de retrô, de medieval, com futurista, cheio de cores. Nada disso estava. Apenas a sensação de ressaca, que todo dia, mesmo sem beber, eu tinha. Apenas o pressentimento de que eu talvez não tivesse vontade de acordar no dia seguinte. Apenas o medo de levar outro tiro cada vez que eu descia pra fazer compras (no mercadinho ao lado do bar). As maçãs, a camisa que ela usara. O cigarro, que joguei pela janela. Eu tinha medo, eu tinha saudade.

O cara morreu. Os guris daqui do prédio o espancaram, mas não até à morte. Não, disso se encarregaram meus amigos de bar. Alguns até conheciam o cara, mas eu os imagino dizendo "foi mal aí, Gervásio (ou whatever it is o nome dele), mas tu mexeu com o considerado da galera" ou "mermão, tu não devia se meter com a turma que mora por aqui" ou suas variantes. Foi encontrado boiando no rio mais conhecido da cidade, com buracos de bala, faca, marcas de linchamento. O amigo foi encontrado, pois era o dono da arma. O amigo em quem enfiei o copo. Foragido, o pilantra. Tentou correr da polícia e virou peneira. Putz. Eu sou amaldiçoado. E quem se mete comigo também, pelo visto.

Foda, isso.

quinta-feira, agosto 23, 2007

A Verdadeira História VII


Barulho de vidro despedaçando. De onde...? A porta da varanda. Meu peito sangrava muito, e aparentemente, a bala varou o meu corpo, atingindo a varanda. Ela gritara. Acordei com aquele rosto lindo chorando em cima de mim. Doía pra caralho, putamerda! A gente sempre pensa que essas dores muito fuderosas a mente não registra, e por isso é como se não doesse. O cacete que não! Só que mesmo assim eu tava tranqüilo. Seus olhos. Nem o barulho, nem a dor, nem o desmaio fizeram os seus olhos desaparecerem. Ainda estava em meu mundo. Ela ainda estava em meu mundo.

Os vizinhos chegaram, Dona Amália chorava, gritava que eu era jovem demais. Antecipando mesmo, a velha queria que eu morresse? Putz! O porteiro apareceu com um médico que tinha se mudado recentemente. Ela não soltava minha mão, apesar das constantes advertências do médico. Uma pessoa que eu nunca vira ligava pra emergência. Putamerda, que dor. Mas eu não esperei, foda-se a emergência. Eu me levantei, mesmo o médico tentando impedir. Mesmo a visão turvando, ficando escuro (e vermelho, juro, parecia sangue nos olhos), me levantei e fui ao corredor. Os adolescentes da academia, que moravam no meu andar, espancavam o cara na porta do elevador. Ele já estava inconsciente, mas batiam nele mesmo assim. Putz, é bom ser querido.

Encostei na parede, e acendi um cigarro. Dona Amália veio tentando tirá-lo de mim, mas eu disse que tava bem. Engraçado isso. O médico disse que meu corpo cauterizou o ferimento, e que provavelmente não tinha atingido nenhum órgão vital. Mas tava doendo pra caralho. A ambulância chegou. Fomos eu, o médico e Ela. Ela ficava calada, olhando pro ferimento, mas não pro meu rosto. Eu não conseguia mais falar, nem ouvir nada. O som tava abafado, e as luzes estavam estranhas. Eu me senti morrendo. E eu tava, acho! Mas aí ela se abaixou e me beijou. E putamerda, ela dormiu com a cabeça no meu peito, em cima do sangue. Dormiu mesmo, escutei um leve ronco. Aí eu desmaiei.

Tive uns sonhos estranhos, senti dor. Um macaco de batina usava uma serra elétrica em meu peito. E ela estava lá, rindo...Ou chorando, sei lá. Mas ela gritava, apontava pra mim. Médico e enfermeiros tomavam whisky, enquanto o macaco gritava "mais endorfina, mais endorfina" com uma voz meio símia! Como eu sei que era símia? Whatever. E aí vinha um porco e com as mãos (ele tinha 3 dedos em cada), abria um buraco em meu braço e vomitava algo dentro. Eu me sentia ligadão. Depois o escuro. Me senti mesmo no escuro, e escutava vozes. "Provavelmente das pessoas conversando em meu quarto", pensei. Mas diferente dos filmes, eu não discernia as palavras. Só sabia o significado: Talvez eu não saísse daquela. E também reclamavam de terem deixado eu fumar, ora! O que poderia acontecer? Sair fumaça pelo buraco da bala?

- Ora, finalmente! - A enfermeira parecia tirada de um seriado de estereótipos. Boazuda mesmo.
- Hmmm, olá. Bonitos olhos.
- Mas veja! Um piadista! Então, como está se sentindo?
- Incrível. Você não faz idéia... Que dia é hoje?
- 24 de setembro. Você passou 18 dias em coma.

Não consegui falar. Só então percebi que o meu mundo tinha ido embora. E Ela também.

domingo, agosto 19, 2007

Intervalo

Não tô mais conseguindo segurar. Já são mais de 70 segundos sem respirar. Meus pulmões, debilitados pelo fumo, não aguentam tanto tempo sem adquirir seqüelas! Vou ter seqüelas, certeza! Setenta segundos. 70. Setenta segundos sem ar, começo a ficar tonto. Como eu cheguei até aqui já é uma pergunta! É uma façanha incrível, alguém como eu conseguir passar tanto tempo sem respirar!

Ficando tonto, ficando tonto. A dor é lancinante. A cabeça começa a girar, e nenhuma aventura se equipara a isso. Lancinante, setenta segundos, ficando tonto, dor. Uma dor na cabeça, daquelas agudas, apenas em um lado do cérebro. Deve ser relacionado a alguma faculdade que eu perderei, se ficar muito tempo assim, alguma faculdade ligada ao hemisfério direito do cérebro. Que função é essa, eu não sei. Mas dói, como uma agulha perfurando o crânio e sugando o líquido que envolve este hemisfério. O direito.

Ficando verde, tonto. Mas como eu sei que fiquei verde? Ora, é assim que ficamos quando estamos sem ar, né? Ou é azul? Roxo? Não sei, eu não estava enxergando meu rosto. Putz, a essa altura, eu já devo ter passado mais de 100 segundos, quase dois minutos. Eu não sei mais quanto tempo vou aguentar. Tonto. Tá as palavras difícil organizar ficando. Tonto, demais tonto. Não aguento mais. É o fim!

- Putz, ainda bem que saímos. Esse carro tá fedendo a vômito.
- É, eu fiquei muito bêbada ontem. Desculpa.

segunda-feira, agosto 06, 2007


Atualizado, leia o Post anterior.


A Verdadeira História VI



Acordei às duas da tarde. Era feriado, e ao meu lado, ela dormia. Dormia bem, aparentemente. Esboçava um sorriso. Um sorriso! A alucinação não tinha passado! Mais uma vez, eu acordei em meu mundo! Eu estava com uma dor no pescoço, provavelmente por dormir com sua cabeça em meu peito, e olhar pra baixo para contemplá-la, até dormir. Passei ainda mais vários minutos assim. Não ousei me mover.

Depois, com o cuidado de não acordá-la, me levantei e fui ao banheiro. Lavei o rosto, escovei os dentes. Voltei ao quarto, peguei a carteira de cigarros - como aquilo foi parar ali? - e fui à cozinha. Com o cigarro aceso, pendurado na boca, de samba-canção e sem camisa, liguei a cafeteira e sentei na varanda. Logo depois, um estalo: Putz! Não é assim! Eu tenho visita! A melhor visita ever! Joguei o cigarro pela varanda, corri pra cozinha e abri a geladeira. Não tinha muita coisa, eu não costumo tomar café. Sorte que eu gosto de frutas, e isso, i'd got plenty.

Fechando a porta da geladeira, equilibrando frutas, e queijos and all, ela estava lá, com minha camisa, nada por baixo - minha camisa servia como vestido pra ela -, olhando pra mim com aquela cara de sono. Sorria, e estava com a mão em cima da minha carteira de cigarro. De repente, andou em minha direção, acendeu o cigarro, e colocou em minha boca. Puxou uma maçã da pilha que se amontoava em meus braços, e foi pra varanda com a xícara de café que já tinha colocado sem eu perceber. Fiquei preocupado. Tava ventando muito, tava nublado e frio. Mas era a única preocupação que eu tinha naquela tarde.

- Eu não tomo café da manhã. Vou comer essa maçã pra te agradar, tá?
- Não precisa. Eu também não tomo.

Sentei com ela e coloquei um cobertor em suas pernas. Mas ela também adorava o frio, e tirou, com um sorriso. Terminei o cigarro e o café. Me levantei pra pegar mais, e quando cheguei na cozinha, encontrei-o. O amigo do homem em cujo ombro eu havia enfiado um copo, no bar, no último domingo. Ele segurava uma arma, apontada pra mim.

Então tudo ficou frio e escuro, e eu só pensava em uma coisa:

_________Podia ter matado alguém quando joguei o cigarro pela varanda.

segunda-feira, julho 02, 2007

A Verdadeira História V



||||| | Ela veio, e veio de vez. As nuvens estavam mais laranjas/roxas/verdes/amarelas que nunca. O céu, que devia estar escuro (creio que eram quase onze da noite), estava composto de listras, tipo uma zebra, só que vermelhas e brancas. E começamos a caminhar pela praia, e correr na areia. Ela estava feliz, eu notava. Seu sorriso estava lindo, chamando atenção de todos que passavam. Ou era apenas a minha?

- Quem precisa beber com um céu colorido desse?

||||| | E o mais engraçado é que a frase não era minha, era dela. Caímos na areia, rindo, felizes. Parecíamos bêbados, mesmo, mas apenas na alegria. E a minha alegria estava incomensurável. Era absurda a maneira como explosões aconteciam em todo o meu corpo. Os clarões initerruptos, pareciam agora conseqüências destas explosões. Eu estava Feliz?

||||| | Ela aconchegou a cabeça em meu peito, e eu a envolvi com o braço. Com o outro, alisei seus cabelos, curtinhos, de boneca. Eram castanhos. Descobri o nome.

- Por que você sempre pareceu evitar isso, Dimitri? Por que você fingia medo de mim, quando na realidade o medo era de você mesmo?
- Não é tão simples assim, mas eu vou te explicar. Eu vou te mostrar, aliás, só preciso descobrir como! Você precisa conhecer meu mundo.
- Se você quiser me apresentar, quero me tornar mais do que íntima. Quero que seja o meu também.

||||| | E seria, oh, Deus. Seria. Gostaria que tivesse sido.

||||| | Mas nunca chegou a ser.

domingo, junho 24, 2007

A Verdadeira História IV


||||| |
Com a descoberta, fiquei nervoso. Não sabia o que fazer. O cheiro das flores não era exatamente real; ou era? Eu estava deliberadamente escolhendo o mundo do meu distúrbio como o Meu Mundo real, e percebia isso. Era uma decisão, era... era justo. Eu precisava ter algo, e aquilo era meu. A garota me abandonou; me abandonou da pior forma possível. Deixou de ser, sem ter sido nunca. Somente no mundo...

||||| |E pensar aquilo me deu uma idéia! Se eu escolher aquele mundo como o meu, o meu mundo real, ela será pra sempre aquele anjo encantador, aquela alma boa que conversa com um bêbado, com olhos - pequenininhos - que podem me hipnotizar, mesmerizar de uma maneira que eu não queira acordar. E era exatamente aquilo que eu precisava e iria fazer. Como? Ora, já tinha um certo tempo que eu não fazia a transição, e não tinha a mínima idéia de como fazê-lo. Teriam sido as pancadas na cabeça?

||||| |Ao vê-l*s saindo do prédio, tive um acesso; não do jeito que queria, apenas parecia uma crise, uma explosão interna. Implosão?

- Ei! Menin*s!
- Hrmnm?
- Pensei cá com meus botões. Que tal sairmos? Amanhã é feriado, e esse fim-de-semana não foi lá essas coisas.
- Eu não posso. É aniversário da mãe do meu marido.
- Hmmm, por isso que eu não caso, Renat*. E você...?
- Você vai ficar bêbado daquele jeito de novo?
- É meu sonho.
- Bora. Mas você me deixa em casa de Taxi.

||||| |Estranho. Tão fria, tão ausente, mas aceita assim. Talvez... Talvez algo tenha acontecido. Mas lá fomos, pro complexo cheio de bares dois quarteirões depois da Soft. Tava passando um jogo de futebol, e procuramos o mais vazio, pra sentarmos. A conversa parecia morta, ela não conversava, não me olhava nos olhos. As respostas, monossilábicas, eram balbuciadas. Mas ela estava encantadora. De jeans, all-star vermelho, e uma blusa branca básica.

||||| |De repente ela decidiu falar. E parecia que éramos casados. Apesar do tom agressivo do discurso, era uma sensação boa. Ninguém discute com tanta paixão um assunto que não seja sério. Eu e ela éramos algo sério.

- ...E assim, do nada, você se levanta, compra um cigarro, paga a conta e vai embora. Eu achava que tava indo tudo legal, pô. E agora, você me chama pra sair de novo?
- Peraí... Eu que te deixei lá, no bar? Eu não lembrava! Como assim, não é p...
- Claro, culpa da bebida. Sempre é. Dimitri, não sei se você é louco, mas não dá pra viver nesse mundinho...

||||| |Quando ela falou do "meu mundinho", finalmente. Acho que o nível de emoção estava realmente alto, pois os clarões vieram com explosões. Raios? Relâmpagos! Linhas azuis, bolas coloridas, neve brilhante - não, não era neve; eram folhas de algodão luminoso -, e meu mundo apareceu, ainda mais colorido que todas as outras vezes. O chão encheu-se de grama, e as flores cresciam em câmera lenta (ou rápida, depende da perspectiva). E eu vi o rosto dela. Umas olheiras absurdamente sexies, abaixo de olhos frios, cinzentos. O cabelo, acima destes, era curto, com mechas meio onduladas, e de uma cor que eu não conhecia. Quando você trabalha com programação de computadores, seu repertório visual fica um pouco desatualizado. Ela ia trabalhar linda daquele jeito? Todo dia?

||||| |Então eu me levantei, puxei-a pelo braço, e ela sorriu. Aquele sorriso que paralisa, que "mesmeriza". E a beijei. Beijei com fogo, com graça, uma torrente de emoções; mesmo de olhos fechados, vi o céu. E era lindo. Molhado, uma saliva quente. Taquipnéia. Respiração ofegante e maravilhosa. O cheiro de sua boca era delicioso. Era canela. Ou cravo-da-índia. Não sei, sei que ela fumava, embora não tivesse acendido ainda um cigarro. O beijo, além de sexualmente excitante, me fez chorar. Chorei enquanto a beijava.

- Vem comigo.


E ela veio.


terça-feira, junho 19, 2007

A Verdadeira História III

Capítulo III
Ler Capítulo IILer Capítulo I


- Você trabalha na Softwild, né?
- Gag... Gash... Sim!
- Você tá passando bem?
- Gag... Gash... Sim! Tab... Csh... Tudo bom?

||||| |Valei-me. O que era aquilo? Eu falava, pré-ouvia tudo na minha cabeça com a mais pura clareza, mas quando as palavras saíam de minha boca, eu parecia estar gaguejando! Seria obra do meu distúrbio? As ondas, as curvas coloridas formando desenhos matemáticos no lugar do céu? As cores, que mesmo de um tecido de algodão preto, pareciam saltar aos meus olhos como luzes hiper-cromáticas? As bocas e narizes e olhos que eu via nas pessoas, e não mais os simples traços formando uma cruz, ou o sinal de "Mais" (um)? Só mais um... O som! Novamente, acrílico, cristálico e bucólico, porém gostoso de uma maneira carálhica? Sua voz? Não.

||||| |Não era isso. Apesar de todas essas transformações acontecendo ao meu redor, era timidez. Nervosismo. * Garot* da minha vida ali, em minha frente, com a mão na cadeira, como se quisesse que eu * convidasse a sentar-se, e eu falando Gags e Gashes. Eu pensava não estar nervos*. E não estava. Exceto quando el* dirigiu-se a mim. Mas o mundo realmente havia mudado. Até o meu distúrbio sofreu uma alteração, aquilo, que era tão concreto, tão estável. Estável? Em sua instabilidade, sim. Nada atingia, pelo menos. E agora havia flores crescendo nos paralelepípedos da rua. Uma grama verde (limão, quase fosforecente) ascendendo da calçada. Os fractais, outrora hiper-coloridos, adquiriam tonalidades de vermelho e rosa, indicando o quê, JC? Amor?

||||| |Então parei de dar atenção a el*, àquele ser angelical e platônico. E vi que era emocional. Meu distúrbio era emocional. Os clarões, os raios, tudo. Mas... qual era o gatilho? Simplesmente parei de pensar, fitei o copo de cerveja, as (8) garrafas ao fundo, e me concentrei. Não sei por quantos minutos (22 segundos) me concentrei, mas algo incrível aconteceu: Continuei vendo as estranhezas ao meu redor. Prova de que eu tava errado. Aliás, tava certo. É emocional, nada a ver com concentração, ou Foccus. Então o que poderia eu fazer? Experiência ZERO em emoções. A emoção pra mim é como aquel* garot* lind*, gostos*, simpátic*, carinhos*, legal e inteligente demais que eu nunca consegui me aproximar. A não ser quando el* se aproximava de mim.

||||| |Já sei. Tenho um exemplar aqui na minha frente! Quando tirei os olhos da cerveja, vi que el*, meu amor, estava indo embora.

- Ei, pô! Volta.
- Hrnmm? Sei lá, achei que...
- Não, não. Relaxa. Eu trabalho sim, na SoftWild, mas não te conheço.
- Ah - disse, virando-se e colocando a mão na cadeira -, eu já te vi algumas...
- Senta aí.
- Possobrigad*. Eu já te vi umas vezes; sabe Renat*? Sou amig* del*.
- Ah, sim, sim! Tudo bom?
- Tudo, mas... você tá bem?

||||| |Mas nada mudava. Passei uma ótima noite, com uma pessoa simpaticíssima, e nada mudou. E sabe o quê? Eu adorei. Terminei nem pensando tanto no problema, e dei mais atenção à forma que os olhos, bochechas e boca del* adquiriam quando eu falava algo engraçado, ou doce. É, também estranhei. Eu, falando algo doce. Há!

||||| |De manhã (meio-dia) acordei. Fora uma noite estranha. Eu estava bêbado. Mas os acessos tinham sumido. Eu não estava mais em crise. A ressaca tava fortíssima, e eu me lembrei: "Renat*!" Renat* fora uma pessoa que se apresentara a mim no trabalho. E eu lembro, tinha alguém com el*. Mas não prestei muita atenção. Tava mais interessado na combinação dos algorítmos que eu teria que reescrever depois do intervalo. Rá, mas existia a internet, claro. Grande ferramenta. Interação e blas blas blas. Terminei por sentar na frente do computador e procurar. Eu não lembrava do nome, mas vai que pela foto?

||||| |Qual não foi minha surpresa quando loguei? Ela estava lá. Achei! Fácil, fácil. É! "Ela" era uma mulher. Uma menina, sei lá. E eu me entusiasmei. Gostei do que vi. Mas não daria pra falar com ela naquela hora. Passei o resto do dia pensando. Tranqüilo em relação à garota, me concentrei mais no distúrbio. Ontem à noite, apesar de bêbado, não estava estranhando tanto as diferenças na imagem. Amei o cheiro das flores enquanto conversava com ela. Amei as cores do céu (até que momento era noite, e quando começou o dia?) e os sons do mundo, do meu mundo, do mundo mágico que me deram. Assim, de presente. Foi bom. A companhia era perfeita... Queria ter compartilhado com ela, o que estava vendo ouvindo e sentindo. Mas não, calma. Segunda eu falo pra ela, no trabalho.

||||| |Não saí à noite. No domingo, quando acordo, acontece algo pela primeira vez: Já acordei vendo os fractais... E dessa vez, os clarões e os raios estavam inseridos no "durante"! Junto com os fractais, e não apenas como "Abertura" e "Encerramento". Dessa vez... Dessa vez era mais forte. Almocei e fui pra um bar. Ela não estava lá. Apenas dois homens sentados numa mesa, sem conversar e outra mesa armada com apenas uma cadeira... a minha. Sentei e pedi uma cerveja. E estava começando a apreciar o distúrbio (embora por mais que eu gostasse, nunca iria chamar de outra coisa; não saberia como). E quando vi um homem sobre um monociclo, com o rosto todo maquiado de palhaço, cores vibrantes, ululantes, essas cores cuspindo fogo no meu rosto, um fogo que apenas aquecia, não queimava, fiquei ainda mais entusiasmado. E acho que sorri. O mais estranho? Os dois homens perceberam que eu sorri.

||||| |Um deles se levantou, enquanto o outro sacou a arma e apontou pra mim por baixo da mesa. Esse é o problema de morar numa cidade como a que eu moro. Violência? Não, não. O calor. O calor faz as pessoas agirem assim. O calor e a má administração social.

- Tá rindo de que, bróder?
- V...você vê meu sorriso? - Pra quê fui constatar isso? Só me fez sorrir mais. E com isso, irritá-lo mais.
- Vai parar, mermão?
- Me diz como! Me diz como você fez pra ver! - Queria que ele me dissesse... E assim eu faria a garota heavenmetal participar de mim. Do meu mundo!

||||| |Só que ele levantou a mão. E justamente aí, os clarões cresceram e ficaram mais freqüentes, os raios começaram a passar mais e mais rápido, e de repente, com um cheiro de queimado, voltei a ver o mundo normal. Justamente pra levar o primeiro murro. O primeiro de muitos. Perdi as contas no quinto. Mais um pouco, e eu me levantei, e bati nele com algo que não sabia que tava em minha mão: o copo. Americano, daqueles de bar. Justamente no ombro, onde se estilhaçou e os pedaços entraram. O amigo, que estava armado, se levantou, mas pra minha surpresa, pediu-me desculpas, puxou o amigo, e entrou no carro.

||||| |Eu poderia ter morrido. O dono do bar me chamou e me aconselhou a prestar queixa, ele testemunharia a meu favor, mas... Não, não. Minha vida vai muito além daquilo, hoje. Eu não morreria ali.

||||| |Fui pra casa. Passei o resto do domingo bêbado, cansado, com dores no rosto (os murros, os murros), e nada do distúrbio aparecer novamente. Pena. O efeito foi contrário, a maldição tornara-se bênção, e será que ao mesmo tempo, escasseava?

||||| |De manhã, segui a rotina. Acordei cedo, tomei um café com um cigarro, enquanto escutava música e surfava um pouco na web. Ao fim, tomei banho e me dirigi ao trabalho. Nada dos clarões, nada de raios. Raios! Ao chegar no trabalho, fiquei atento. Renat* podia aparecer, e sua amiga também. Vi Renat*, mas sozinh*. E como costumo adiar tudo, não perguntei da amiga. "Vou esperar a oportunidade certa, quando aparecerem junt*s", pensei. Não a vi pela manhã, no intervalo do almoço...Nada. Na saída, às 17h, desci correndo. Queria ir a um bar. Passar novamente pela adrenalina de talvez alguém reconhecer meu sorriso. Mesmo que pra isso eu ainda precisasse "entrar" naquele mundo, eu precisava saber como se entra nele. Mas antes mesmo de sair do prédio, Renat*. Renat* e aquela forma difusa, aquele anjo, pequeno, atraente. Era ela. Frio na barriga, nó na garganta, chamam de angústia. E lá estava ela. Quando parei em frente a el*s, Renat* falou comigo, e logo em seguida, ela.

- Oi, garot*. Chegou bem em casa?
- Hehê, cheguei sim. Acordei de meio-dia, mas, a ressaca não tava tão forte.
- Você parecia meio bêbado. - O que era aquilo, aquela distância? Por que tão fria?
- Não, não era bebida... Era... Não sei explicar, era...
- Hmmm, sei... Então! A gente tá indo nessa. Até amanhã! Beijos.
- Até...


||||| |E percebi que ela, como tudo, só era perfeita no meu mundo.

||||| |E é um mundo que eu não mereço.